Há 70 anos, nadadora cruzou o Tietê e venceu prova tão badalada quanto a São Silvestre

O que aconteceria a uma jovem de 15 anos que ela se jogasse no rio Tietê e nadasse por mais de 5 km? Hoje, hepatite, febre tifoide e leptospirose. Em 1944, a conquista do primeiro lugar na maior prova de natação da cidade.

Há 70 anos, Elisabeth Huttenlocher venceu a Travessia de São Paulo a Nado na categoria feminina. Durante 5.500 metros, superou trechos de correnteza, curvas (veja mapa) e deixou para trás rivais mais experientes.

Naquele momento, nem ela nem as milhares de pessoas que se aglomeravam às margens do rio imaginavam que aquela era uma despedida.

Emblemático espaço de lazer para os moradores da cidade, o Tietê já começava a dar sinais de contaminação e a expulsar de suas águas pescadores, famílias e esportistas. A cidade que crescera à beira do rio começava a viver como se ele não existisse.

"Fico triste de ver o que aconteceu. A gente fazia tanta coisa no rio, pescava, nadava. Tinha peixe, a água era cristalina. Hoje não podemos nem chegar perto", relembra Elisabeth, 85.

Setenta anos depois de sua última braçada no Tietê, poucos encararam a água. Hoje, só mergulhadores profissionais entram no rio, para fazer manutenção de equipamentos. Usam uma roupa grossa e pesada de PVC e um capacete para mergulho.

A imersão ainda envolve uma equipe que monitora a temperatura, a pressão e o tempo do mergulho, feito às cegas na água turva.

Se alguém entrar no rio sem traje apropriado, além de vômito e diarreia, pode contrair doenças como febre tifoide, leptospirose e hepatite.

ATLETAS OLÍMPICOS

O cenário atual em nada lembra o das competições disputadas entre 1924 e 1944. A Travessia de São Paulo a Nado era o mais badalado evento esportivo do rio e chegou a reunir mais de 1.900 atletas. Rivalizava em importância com a corrida de São Silvestre, prova que ocorre sempre no dia 31 de dezembro.

A largada era dada debaixo da ponte da Vila Maria e a chegada ocorria entre os clubes Tietê e Esperia, próximo à ponte das Bandeiras. Os atletas largavam de plataformas sobre a água. As margens do rio e as pontes ficavam lotadas de torcedores. O Tietê não havia sido retificado e suas curvas eram um desafio a mais.

Grandes nomes da época participaram da prova, como Maria Lenk (1915-2007), que foi a duas Olimpíadas.

Editoria de Arte/Revista sãopaulo

"Quem ganhava ficava famoso. Na época, eu era a tal, tirava foto, dava entrevista. Eu adorava", relembra Elisabeth, que aprendeu a nadar no lago do clube Ypiranga e até hoje dá suas braçadas, só que na piscina.

Outra estrela da travessia era João Havelange, 97, ex-presidente da Fifa e atleta olímpico —disputou os Jogos de Berlim como nadador, em 1936.

Em 1943, venceu a prova pela terceira vez, empatado com Victorio Filellini. Os dois nadadores do Esperia combinaram de cruzar juntos a linha final. Os organizadores queriam dar o ouro só para Havelange, mas acabaram cedendo. A vitória dupla motivou uma festa no rio.

Dias depois, a euforia deu lugar a fortes dores: Havelange, uma das primeiras vítimas da poluição aquática, estava com febre tifoide. Com a vida em risco, passou por um tratamento de quatro meses e perdeu 30 quilos.

Já Filellini, hoje com 91 anos, voltou à travessia em 1944 e venceu com folga —27 segundos à frente do segundo colocado. O número de competidores havia caído de 630 para pouco mais de 350. Porém, mesmo com menos atletas, a largada continuava acirrada e era difícil fugir das braçadas e pernadas.

Naquela época, os atletas não sabiam qual era o grau de contaminação do rio Tietê, embora muitos já deixassem a água reclamando dos dejetos de esgoto. Pouco depois da travessia, foram avisados de que nadar ali era perigoso. Era o fim da prova mais tradicional da cidade.

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