Ruas de SP tinham touradas, treinos de artilharia e forca no século 19

São Paulo se gaba por ser uma das cidades com mais opções de passeios no mundo. Mas o que fazia o pessoal que morava por aqui no século 19? Grupos de amigos podiam escolher, por exemplo, entre assistir a uma tourada onde hoje fica a praça da República ou a um enforcamento de um condenado à morte na praça da Liberdade.

Para ir a dois, a moda era fazer piquenique na ilha dos Amores, um pedaço de terra incrustado no rio Tamanduateí, no parque Dom Pedro 2º —que, diga-se, ainda era um parque.

Para a edição número 200 da sãopaulo, a reportagem foi em busca dessas e de outras histórias da cidade durante o século 19, voltando 200 anos no tempo. "Demolimos e construímos outras coisas no lugar, num movimento de apagamento das memórias", diz a historiadora Laura Antunes, da UFF (Universidade Federal Fluminense). A seguir, as memórias que conseguimos recuperar.

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Enforcamentos em praça pública

No século 19 largo da Forca
Hoje praça da Liberdade, região central,onde é feita a feirinha oriental

Quando vigorava a pena de morte no Brasil, a praça da Liberdade era um dos locais de execução. E tinha outro nome: largo da Forca. Em 20 de setembro de 1821, um desses enforcamentos tornou-se folclórico: o do soldado Francisco Xavier da Chagas, o Chaguinhas.

Condenado à morte por participar de uma rebelião que reivindicava salários atrasados, Chaguinhas se safou na primeira tentativa de execução porque a corda da forca se rompeu. Na sequência, tentaram eliminá-lo com uma tira de couro, que também se partiu.

O público que assistia à execução interpretou as falhas como um sinal divino da inocência do soldado e pediram clemência, mas ele acabou morto na terceira tentativa, a paulada.

Em honra dele, que já era cultuado pela massa, ergueu-se no local uma cruz, a "Santa Cruz dos Enforcados", que daria origem à capela Santa Cruz das Almas dos Enforcados, até hoje no bairro.

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Ilha dos Amores

No século 19 rio Tamanduateí, Parque Dom Pedro 2º (ainda era um parque)
Hoje rio Tamanduateí, entre a avenida do Estado e o terminal de ônibus, região central

No trecho que passa por São Paulo, o Tamanduateí é hoje um rio poluído —tem qualidade péssima segundo a Cetesb. Era bem ali que ficava uma ilhota ajardinada onde os paulistanos passeavam nos anos 1870 e 1880.

A ilha dos Amores foi um pedaço de terra que sobrou no meio do rio após sua primeira retificação (alinhamento). Ficava próxima da rua 25 de Março e mantinha um quiosque de comidas e bebidas, um espaço de descanso e uma casa de banhos —muito útil em tempos sem água encanada.

"Digamos que era como um Ibirapuera em termos de lazer", compara o pesquisador Jorge Eduardo Rubies, da Associação Preserva SP. Claro que observadas as devidas proporções: o censo de 1872 registrava pouco mais de 31 mil habitantes em São Paulo.

Mais tarde, a ilha acabou abandonada. As chuvas que a alagavam parcialmente foram parte do motivo. Por fim, não sobreviveu à segunda retificação do Tamanduateí, no início do séc. 20.

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Mercados dos caipiras

No século 19 rua de Baixo
Hoje rua 25 de Março, região central

Para quem acha moderno comprar direto do produtor na feirinha de orgânicos da Água Branca, saiba que os paulistanos já fazem isso há séculos.

Na rua de Baixo —que passou a se chamar rua 25 de março em 1865— foi construído, em 1860, um mercado municipal, conhecido como Mercado Grande ou Mercado Velho. Junto dele havia um outro, informal, o "mercado dos caipiras", onde os produtores vendiam diretamente ao público.

Ambos ficavam bem próximos do rio Tamanduateí, nos tempos em que barcos atracavam por ali. Havia até um porto —a ladeira Porto Geral não foi batizada ao acaso. Algumas décadas depois, o Mercado Grande e sua filial clandestina foram demolidos e substituídos pelo Mercadão, inaugurado em 1933.

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Circo, touradas e varíola

No século 19 largo dos Curros
Hoje praça da República, região central

Loucos, doentes, excluídos e animais tinham um lugar em São Paulo: o largo dos Curros (atual praça da República).

Era um campo aberto que, embora hoje faça parte da região central, integrava a periferia paulistana até o século 19 —o centro se restringia à região do Pateo do Collegio, no chamado platô histórico.

Por ser afastado e considerado mal frequentado, o largo dos Curros era uma região desvalorizada. Foi o local escolhido para instalar um hospício e também o Hospital de Variolosos. Concentrava ainda o comércio ambulante, os circos e era utilizado para adestramento de cavalos e para habilitação de cocheiros.

Ali também ficava uma arena para as corridas de touros, realizadas para festas do Espírito Santo e outras comemorações. "Em 1887, após alguns anos de proibição pela Câmara, a volta das corridas foi apresentada pela imprensa como um retrocesso da cidade ao tempo dos divertimentos bárbaros", conta a historiadora Laura Antunes.

A área começou a ser valorizada com a edificação da Escola Normal Caetano de Campos, em 1894.

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Rios vermelhos de sangue

Nos séculos 18 e 19 rio Anhangabaú e ribeirão do Itororó
Hoje avenidas 9 de Julho e 23 de Maio, região central

Quando São Paulo era apenas um povoado, surgiu às margens do rio Anhangabaú, em 1773, um dos primeiros matadouros da cidade, na rua Santo Amaro (também conhecida como rua do Curral e rua do Verde).
Abatidos sobre o chão de terra, os animais mortos tinham seus restos e sangue despejados no rio. Por questões sanitárias, o matadouro foi transferido para a baixada do Humaitá, em 1856, quando os dejetos passaram a ser jogados no rio Itororó, onde fica hoje a avenida 23 de Maio.

Ocorre que o Itororó era um dos formadores do rio Anhangabaú. Portanto, o sangue, os restos de carne e de ossos viajavam até o centro da cidade. Só em 1887 foi inaugurado o matadouro da Vila Mariana (hoje a Cinemateca), com instalações maiores e mais adequadas. O rio Anhangabaú foi canalizado no século 20, assim como o Itororó.

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Marcha soldado

No século 19 praças da Artilharia e da Legião
Hoje largo do Arouche, região central

O marechal José Toledo de Arouche Rendon foi dono de vastas terras no centro de São Paulo, incluindo o largo do Arouche. Entre o final do século 18 e o começo do século 19, a área não passava de uma chácara com plantações de chá e uma sede. Ilustre figura da província, o marechal recebeu a incumbência da Câmara de demarcar e abrir ruas na região no início do século 19.

Foi então que ele decidiu implantar uma área para exercícios militares, nomeadas de praça da Artilharia e praça da Legião, que viriam a se tornar o largo do Arouche.

Em 1811, o marechal enviou à Câmara um ofício justificando a iniciativa: "Por não haver dentro desta cidade nem nos seus subúrbios uma praça em que se possa disciplinar os milicianos por brigadas". A área, que deixou de ser um campo militar no fim do século 19, foi toda loteada e deu origem à Vila Buarque.

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Tio do Zé do Caixão foi toureiro em SP

Em 1904, o espanhol José Marins chegou ao Brasil e passou a sustentar a família se apresentando como toureiro em várias cidades paulistas.

Ele criou um misto de tourada com circo, no qual enfrentava as feras vestido de palhaço.

Seus dois filhos, Miguel e Antônio, seguiram seus passos. Enquanto Miguel se dedicava ao trabalho com os touros (veja seu cartão de visitas acima), Antônio fazia apresentações eventuais. Em algumas delas, levava o filho pequeno, José Mojica Marins, que se tornaria o cineasta Zé do Caixão.

Fontes: Benedito Lima de Toledo, arquiteto e historiador, Douglas Nascimento, jornalista e pesquisador do site São Paulo Antiga, Edvaldo Rocha, administrador da capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, Jorge Eduardo Rubies, da Associação Preserva SP, Laura Antunes, historiadora do Laboratório de Pesquisa Oral e Imagem da UFF, e os livros "A Capital da Solidão", de Roberto Pompeu de Toledo, "História dos Bairros de São Paulo", de Nadia Marzola, "Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins", de André Barcinski e Ivan Finotti, e "São Paulo: Três Cidades em um Século", de Benedito Lima Toledo. Agradecimentos: Arquivo Público Municipal e Arquivo Público do Estado

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