Sobrevivente do Holocausto vai a campos de concentração em filme

"Eu sou o último dos moicanos. Dizem até que sou uma lenda viva. Mas não, só estou aqui para não deixar que aconteça de novo. Não pode acontecer de novo." São palavras que Julio Gartner fala na sala de seu apartamento em Higienópolis com a voz plácida de quem viveu 87 anos -e, além disso, sobreviveu a um dos episódios mais sombrios da história.

Julio foi perseguido por ser judeu na Polônia, onde nasceu, e passou por quatro campos de concentração nazistas entre 1943 e 1945.

Só foi libertado um dia antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Sete décadas depois, voltou aos locais onde perdeu a família para filmar o documentário "Sobrevivi ao Holocausto", que entra em cartaz na quinta-feira (21). Ainda não se definiu em que salas será exibido.

Paulo Pereira / Folhapress
Julio Gartner, 87, em frente ao documentário que protagoniza, em sala do Pacaembu
Julio Gartner, 87, em frente ao documentário que protagoniza, em sala do Pacaembu

A ideia do roteiro, que ele chama de "retorno ao inferno", nasceu quando o diretor Marcio Pitliuk conheceu Julio na Marcha da Vida, excursão a campos de concentração na Polônia seguida a uma ida a Israel.

"Eu estava lá com meus netos. Só fui porque eles me pediram muito. Nunca quis voltar para a Polônia."

Pitliuk na época colhia depoimentos de sobreviventes do massacre. Conversou com Julio quando estavam de volta a São Paulo e ficou tão impressionado por sua trajetória que propôs um filme só sobre ele.

A indecisão durou "uns segundos". O longa foi filmado em 40 dias, num esquema "road movie". "Foram 15 cidades em Polônia, Áustria, Itália, França e Brasil."

Uma delas, inclusive, era Cinecittà, conjunto de estúdios em Roma usados geralmente para filmes glamourosos, mas que virou o que ele chama de "um depósito de sobreviventes".

Outros trechos dessa história têm ares de cinema. Julio ficou no gueto de Cracóvia, retratado em "A Lista de Schindler" (1993). Diz que só sobreviveu porque um ataque americano destruiu trens que traziam comida para os alemães e ele, pesando 30 kg, foi um dos prisioneiros comissionados a tentar consertar os trilhos.

"Derrubaram toneladas de cevada, que colocávamos dentro das nossas calças e comíamos escondido."

Enquanto conta atrocidades, ele oscila entre o sério e o risonho. "Aprendi a controlar as emoções." Mas ainda se comove em alguns momentos. Um deles foi quando encontrou uma família que o ajudou com abrigo quando ele passou um ano e meio vivendo escondido.

No filme, ele revisita o lugar e conta a história para a jovem brasileira, Marina Kagan, 27, que é sua interlocutora na trajetória. Ela faz o trajeto inverso dele que, assim que teve uma oportunidade, fugiu para o Brasil.

DAQUI EU NÃO SAIO

Quando aportou no Rio de Janeiro, diz que "não conseguia ver beleza nenhuma, apenas pensar em o que fazer para sobreviver".

A impressão melhorou um pouco quando, meses depois, chegou a São Paulo. "Não sei por que, mas olhei para essa cidade e pensei: 'É aqui que vou ficar o resto da minha vida'."

A premonição se cumpriu. Diz ter encontrado uma boa vida no Brasil. Casou-se com uma italiana que também sobrevivera ao Holocausto. A união durou até o fim da vida dela, dez anos atrás. Desde então, Julio se dedica às paixões, como o São Paulo FC, presente até na capa do celular.

Anda animado com a troca de missivas que começou há meses com Jennifer Teege, uma alemã-nigeriana e negra que escreveu um livro contando o processo de descobrir que seu avô era Amon Goeth, um dos principais carrascos a mando de Hitler. "Quase nos vimos em Nova York. Quando ela lançar o livro no Brasil, nos encontraremos. Afinal, são duas histórias que têm muito a conversar."

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