'Vou experimentando, sou muito de momento', diz Rincon Sapiência

Descalços, Rincon Sapiência e DJ Asma, que acompanha o rapper há dez anos, falavam sobre o vinil de músicas inéditas que o MC planeja lançar em 2015. Rafael Cortes, idealizador do selo Assustado Discos, também participava, sem sapatos, da conversa –em um quarto lotado de LPs e aparelhos do disc-jóquei em um apartamento na zona oeste de São Paulo.

Rincon começou a se envolver com a música aos 15 anos. Foi seu hit "Elegância" (2009) que fez com que ele pudesse largar seu último emprego fixo, em telemarketing, e viver da música. Recentemente, tocando em uma festa, uma espécie de epifania o fez pensar em outros caminhos para seguir sua carreira –sem, claro, "cuspir no prato que comeu".

"Aí lancei o EP 'SP Gueto BR', que já tem uma proposta diferente. Flertei bastante com o rock, guitarras distorcidas e essas coisas. Consequentemente, passei a tocar num circuito um pouco diferente, o que foi legal. Eu vou experimentando", conta o músico criado em Itaquera, zona leste de São Paulo.

"Com maestria, tudo é possível fazer dar certo." Leia abaixo a entrevista com Rincon Sapiência.

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sãopaulo - O que te levou a fazer rap? Por que você começou?
Rincon - Cara, era a música, né? Que eu escutava desde muito novo, por influência do meu irmão mais velho. Mas nunca tive pretensões até que começou uma febre ali onde eu morava, na Cohab 1, de ter banda de garagem, por influências de Planet Hemp, O Rappa, Charlie Brown Jr. –essa fase toda. Num momento a gente resolveu montar uma banda. Isso foi no ano 2000. E eu nunca parei. Sempre continuei fazendo música.

Qual era o nome do seu grupo? Já rimava?
Chamava MD38 [Munições da 38]. Por mais que, pra gente, fosse uma banda de rap, hoje em dia –lembrando da estética e do jeito que a gente tocava – era quase uma banda de rock também.

E como você foi parar na carreira solo?
Eu era muito novo, tinha 15 anos. A banda era pauleira, o batera descia o braço, a guitarra... Não tinha baixo, pra você ter ideia –era uma bateria e duas guitarras. Era muita guitarra distorcida, muito barulho... E a base engolia minha voz, meu timbre era totalmente outro. Aí muitas vezes era mais confortável compor as coisas nas bases, né? Nuns CDs gringos de base. Naquela época, nas galerias, era vendido um disco chamado "Base para Rappers". Aí eu comecei a rimar nessas bases. Vi que era mais confortável e suave de cantar, aí naturalmente eu passei a ter minhas coisas sozinho. Mas já montei um monte de projeto, já fiz parte de várias bandas.

Que tipo de letra fazia o MD38?
Como eu ouvia rap nos anos 90, o rap me soava complexo, né? Porque falava muito da rua, era protesto e tal. Eu não tinha essa bagagem. Então eu me imaginei fazendo rap quando ouvi o álbum "Seja ComO For", do Xis. Pra mim é um grande clássico do rap nacional. E o Xis tem essa característica, né? Ele tem todos os signos da periferia, o jeito de ele falar, a gíria, as músicas que ele canta... Mas também fala das minas, do jogo de várzea... É bem zona leste, eu diria. Do time dele, que é o Corinthians... Vejo ele até mesmo como um divisor de águas dentro do rap, porque quebrou uma certa postura. Aí com essa postura, que eu vi por parte dele, me vi fazendo rap. Vi que eu poderia ter liberdade de falar da minha quebrada e dar um salve nos manos do skate, do samba e do time da quebrada também. Então minhas músicas eram sempre baseadas na música de alguém. Se eu tinha uma música mais protesto, era influenciada por uma música do MV Bill, por exemplo. Até eu criar uma identidade foi meio desse jeito. Em 2000 resolvi arriscar.

E os Racionais? Foram uma influência pra você também?
Os Racionais eram a maior voz que tinha. Tanto é que na primeira série tinha eu, que ouvia rap por causa do meu irmão mais velho, e um parceiro que ouvia rap por causa da irmã dele mais velha também. Então a gente já cantava. Já na escola a gente pirava assim. E basicamente todo lançamento do Racionais era um acontecimento na quebrada. Principalmente o "Sobrevivendo no Inferno" [1997]. Meio que parava o bairro. Não só o meu, mas, acredito, a maioria dos bairros. Porque qualquer tipo de pessoa que hoje em dia estava indo pra outros rolês, curtindo outras coisas, em 97 ouviu "Sobrevivendo no Inferno". Você ia fazer trabalho de escola, ou ia pra casa de qualquer pessoa, e via, na prateleirinha, o CD. Todo mundo tinha. Então Racionais, durante muito tempo, inegavelmente é quem ditou os caminhos do rap. É inegável que quem curtiu rap nessa época tenha uma influência dos Racionais.

Ainda aconteceu isso?
O trunfo do movimento do rap são as opções. Se você citar todas as grandes figuras do rap que têm se destacado, cita Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Brasília, Rio, São Paulo... Aí um é mais jovem, outro é mulher... Tem toda essa variação que dá um leque maior, que eu acho que no rap não era tão grande. Então acho que para um moleque querer fazer rap hoje ele não tem basicamente um modelo ou uma figura. Um discurso... Ele já tem muitas opções. Diria que mudou nesse sentido.

E isso é legal?
Acho isso legal porque muito se faz esse paralelo do rap de hoje e de antes e, assim, algumas coisas de antes eram muito... Eu ainda sou fã de rap, mas na época eu era mais fã do que fazedor de música. Então antes era bem mais caloroso, existia a roupa, a tribo mesmo... O lance de "sou do rap", a roupa de rap, os shows de rap... Podia ser na escola do seu bairro... Era festival... Tinha um calor diferente, mas o contraponto de antes pra hoje é que o rap é amplo, entende? Para se trabalhar, para fazer uma série de coisas, o rap consegue estar nesses lugares. Que é importante. Não adianta ter uma única proposta e as coisas girarem só em torno disso. Acho que para uma cena, tanto no samba quanto em qualquer outra, tem que ter a diversidade. Eu sinceramente não acredito num modelo pleno, acho que são momentos. Pode ser que o entretenimento não queira tanto o rap que nem hoje e as coisas possam voltar a ser que nem antes. Ou o entretenimento pode consumir tanto que o rap possa virar outra coisa bem descaracterizada mesmo. Então é muito incerto isso.

O que você faz hoje você chama de rap?
Sim. Acho que o meu pensamento é rap –a métrica, o tema, o jeito de fazer. Acho interessante também o rap daqui girar um pouco com a cultura brasileira, que envolve a música brasileira, músicas regionais também. Não que seja exatamente uma regra, né? Mas acho que é legal ter referências que qualquer pessoa que escute o rap possa se identificar, entende? Isso é um lance que eu penso bastante, mas não definiria isso como abrir mão de fazer rap. É rap ainda.

Como você descreve seu som atualmente?
É bem difícil, até porque eu sou muito de momento. Eu tinha certos signos bem fortes. Mas, resumindo, eu peguei um pouco de bode de tocar em balada e do jeito que eu trabalhava. Achei que limitou a parte artística e, pra minha carreira, não estava tão legal. Aí lancei o EP "SP Gueto BR", que já tem uma proposta bem diferente. Flertei bastante com o rock, guitarra distorcida e essas coisas. E, consequentemente, passei a tocar num circuito um pouco diferente, o que foi legal. Agora, já estou projetando coisas pra 2015 e pensando em outras coisas também, pensando no como eu quero trabalhar e no como vai ser legal pra mim. Eu vou experimentando. Por mais que eu tenha bastante tempo fazendo música, me vejo como um artista novo. Não diria um artista verde, mas novo, né? Tenho procurado me aperfeiçoar como artista. Mas não posso também cuspir no prato. Faz parte, é algo que conquistei –não me vejo abrindo mão. Acho que o equilíbrio é justamente esse. Quando o trabalho estiver mais pleno, sem ter que sacrificar coisas que eu gostaria de fazer. E acho que vai rolar nesses próximos.

Você acha o cenário atual está bem representado? Está propondo boas coisas?
Acho que sim, tá quente. As mentes estão pensando bastante. Hora e outra você é surpreendido. Vejo um terreno fértil. E esse lance de representatividade é meio relativo. Às vezes pode não interessar pra mim, mas pode interessar outras pessoas.

Ainda há o discurso de "se vender"?
É um pensamento velho. Lógico que é possível que... Por exemplo, outro dia eu estava trocando uma ideia e o cara chegou num ponto muito interessante. Eu estava falando lá da minha quebrada, que eu queria voltar pra lá, mas hoje em dia tá R$ 200 mil pra pegar um apartamento. Tem supervalorização e mil fitas. Aí o cara citou o nome do processo que acontece de as coisas irem mudando tanto, 'evoluindo', que chega uma hora que quem é de lá não consegue mais ficar lá. De ter que sair. Acho que isso pode acontecer com o rap se não tiver sabedoria. Se envolve tanto, faz tantos negócios, aí vai vendo e já era... Mas 90% de muitas críticas de se vender é babaquice. É pura besteira. Muitas coisas que acontecem deveriam ser motivo de orgulho, e as pessoas encaram da pior forma possível. Com maestria, tudo é possível fazer dar certo. Mas tem coisas que são mais difíceis e outras coisas mais encaminhadas. E hoje eu vejo a molecada mais nova com coisas que estão tendo apelo, que é a maconha, essas coisas, nas estampas, nas roupas. Esse lance de curtir mais –e é de direito também.

Isso aqui no Brasil ficou pro funk.
Exatamente. Durante um tempo o rap ficou um pouco chato de o MC querer ser o Gandhi, querer ser aquele cara de frases de efeito e autoajuda, de dar conselho. Assim, falando por mim mesmo, que vivo uma vida mil graus, até mesmo bagunçada em alguns pontos... Quem sou eu pra querer ficar dando uma de super-herói?

O que de importante aconteceu nesse tempo de 12 anos entre os lançamentos dos discos dos Racionais?
A situação econômica faz diferença. As pessoas envolvidas com o rap passaram a ter mais recursos, computador, internet, informação –a própria tecnologia mudou muito. Conseguiram ter acesso a isso e passaram a criar. Isso foi interessante. Tem a vinda de uma geração mais nova também. Pelo fato de estar nesse intervalo do álbum dos Racionais, facilitou a assimilação. Geralmente, os Racionais paravam tudo. Todo mundo ouvia Racionais e tentava fazer parecido com os Racionais. O disco "Nada Como um Dia Após o Outro", por exemplo, já veio um pouco mais pra frente, assim. Ele tem muito essa ideia do brinde, do champanhe para o ar, "Põe no pulso, logo Breitling" ["Vida Loka Parte 2"]... Não chega a ser a ostentação, mas já tava numa ideia de progresso. Todo mundo queria ter progresso, um brinde. Já o "Sobrevivendo", por exemplo, que é o anterior, na minha concepção é o mais bandido de todos. O final dos anos 1990 foi uma fase bandida mesmo do rap, de falar do crime, da cadeia, do detento. Eles [os Racionais] sempre tiveram essa influência. E o fato de eles estarem nessa lacuna facilitou de as coisas aparecerem e serem mais apreciadas, de as pessoas prestarem mais atenção. Enfim, acho que isso teve o lado bom –por mais que, como fã, a gente quisesse que demorasse menos pra sair um outro CD dos Racionais [Risos]. No mais é isso mesmo, tecnologia, situação econômica (que eu acho que é um lance bem relevante).

Ainda tem espaço pra esse tipo de letra mais crua, mais 'bandida'?
Acho que tem, até porque a gente não tá no paraíso. E pra bandido também acho que tem muita coisa nova. Tanto no Brasil quanto fora, a fase mais desbocada é agora. Os gringo põem [nas músicas] umas bundonas, drogas... Os cara estão sem limite [Risos]. Acho que tem espaço pra tudo se adaptando pro novo. Antes, a figura do bandido no rap era tudo era verdade. Os caras eram verdadeiros, as histórias eram contadas. Mas o personagem era muito duro. Era um bandido que não metia, não fazia nada, não relaxava. Então era assim. Quer ser bandido hoje? Da hora, mas os bandidos que eu conheço vão lá no Connection [casa noturna na zona leste], tiram onda e tal. Acho que se você for um bandido chato, não vai cantar. E tem espaço pra reclamar, sim, porque a gente não vive no primeiro mundo.

Por que você acha que os Racionais continuam sendo o grupo mais relevante de rap do Brasil?
Tem o ponto da personalidade. É um grupo abençoado. Tem o Brown, o Blue, o Rock e o KL Jay. São personalidades. Eu diria que são os Rolling Stones do Brasil. O peso dos Racionais vai além da música.

Qual a cara do rap nacional?
Como cena, está madura. Maduro de 21 anos, passou um pouco dos 18. O rap norte-americano já é um nego velho, experiente, malandro, que já conhece o game de cabo a rabo.

O que você sonhava quando começou a cantar, e o que você sonha agora? O que te angustiava e o que te angustia?
Meu anseio mesmo é ser um grande artista. Tem pessoas que, na música, chamaram a atenção pelo que escreveram, pelo que fizeram, pelo jeito que faziam. Esse eu acho que é um lance que é eterno, é maior do que a fama.

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