'É preciso se manter fiel à verdade, mas livre para experimentar', diz Rael

Rael, que já assinou como Rael da Rima, recentemente espalhou dispositivos por muros da cidade de São Paulo. Nele, o passante podia conectar seu fone de ouvido e dar o play.

No meio da rua, com vista para a cidade e sua rotina, aquele momento do curioso seria sonorizado pelas músicas do trabalho mais recente do paulistano, "Diversoficando" (leia mais aqui )

Aos 32 anos, natural do Jardim Iporanga (zona sul) e integrante do grupo Pentágono diz que faz música porque ama e "porque é a única coisa que sei fazer para viver [risos]".

"A gente [rappers] não tem carteira assinada, tem que ir se organizando pra garantir o próprio futuro, o do filho, essas coisas... Preocupações de qualquer pai", conta o músico, que tem planos de, em 2015, ocupar musicalmente paredes de outras cidades do Brasil.

Leia a entrevista com o MC, que hoje tem seus trabalhos vendidos no site do selo Laboratório Fantasma, idealizado por Emicida.

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sãopaulo - Por que começou a fazer rap?
Rael - Para quem vem de quebrada como eu, o rap está inserido no cotidiano. No meu caso teve muito a ver com os Racionais. Eu era criança em uma realidade em que ia pra escola e tiravam sarro do meu cabelo crespo, da minha cor. Quando eu ouvi Racionais pela primeira vez, chapei com aquele grupo enaltecendo tudo isso que era motivo pra me zoarem tanto. Racionais foi muito, mas muito importante pra minha autoestima. Não se discutia racismo e preconceito social na minha casa ou na minha escola, os Racionais me fizeram ver isso. Juntou com isso o fato, de aos oito anos de idade, eu ter amigos mais velhos que me levavam para a estação São Bento [do metrô], o berço do hip-hop. Eu ia lá dançar break, e assim mergulhei nessa cultura.

Consegue descrever seu estilo, ou apontar algo que o diferencie?
O que me diferencia é o fato de ser muito influenciado por gêneros como reggae, samba, música nordestina –tudo isso aparece na minha música. Tem também o fato de eu cantar além de rima. Acho que é essa a minha principal característica.

O que acha da cena hip-hop brasileira atual?
Quando você decide que vai viver daquilo, precisa acreditar e trabalhar pra que vire algo relevante, né? [Risos] Senão já começa condenado a passar fome. A cena está bem representada, sim, aquecida. Olha 2014, que discos foda saíram: dos Racionais ["Cores e Valores"], do Criolo ["Convoque Seu Buda"]... Acho que estamos caminhando para que as pessoas entendam que o rap é uma música com uma mensagem, mas é também ritmo e poesia. É música, é arte. Não precisa ficar presa a esse ou aquele conceito.

Lembra qual foi (e como foi) a primeira vez que você ouviu uma música dos Racionais?
Foi "Pânico na Zona Sul". Eu estava na viela do Jardim Iporanga dançando break. Os caras deixavam no rádio, e começou a tocar esse som. Eu fiquei de cara. Naquela época ouvia coisas como Pepeu, Thaíde, e eles chegaram com uma linguagem diferente, mais pesada, falando sobre a favela, questões sociais, os boys, os nossos dramas.

O que achou do disco novo deles?
Eles continuam sendo os Racionais, a voz da favela. Achei o disco foda. "Finado Neguinho", "Cores e Valores" e "Eu Te Proponho" estão entre as minhas favoritas. Espero que não parem de lançar mais coisas novas.

Ainda há espaço para um rap como o feito na década de 1990? Mais 'agressivo', por assim dizer. Mais cru?
Sempre há espaço na medida em que há necessidade de verbalizar injustiças que são o dia a dia da quebrada. Muita coisa melhorou na favela, mas o racismo não acabou, a polícia ainda mata primeiro pra depois ver quem é... Então há muito a ser dito. Só que, 12 anos depois, não vejo nem motivo pra esperar que seja dito da mesma forma, que os protestos sejam os mesmos. Isso de ser uma denúncia mais agressiva e crua passa muito pelo estilo de quem está escrevendo, é totalmente pessoal. Eles fazem isso de um jeito que só eles sabem, chamam a atenção, despertam a curiosidade até de quem não mora na favela, não vive aquilo. Todo mundo quer saber sobre aquilo. Tem o lance da gíria, todo mundo quer falar como eles estão falando ali na música.

O que diferencia a cena hip-hop de agora da cena de hip-hop daquela época?
Agora tem mais grupos, tem outras pessoas ouvindo, de várias classes sociais. A gente tem mais acesso à tecnologia, a internet mudou muita coisa. O fato de alguns artistas terem aberto um canal para um diálogo com a mídia. Muita coisa mudou, acompanhando as mudanças do mundo de forma geral.

O que você sonhava quando começou? Conseguiu conquistar?
Consegui. Tenho várias outras metas, mas já posso agradecer muito à música. Eu sonhava em não precisar ter outro emprego pra poder fazer música, e hoje vivo dela. Consigo viver confortável com minha família, minha mulher e meu filho, ajudar meus pais. Não posso reclamar.

O que te angustiava quando você começou? O que te angustia agora?
A mesma angústia de se manter relevante o suficiente pra não ficar refém desse mercado que oscila. A gente não tem carteira assinada, tem que ir se organizando pra garantir o próprio futuro, o do filho, essas coisas... Preocupações de qualquer pai. [Risos]

Você faz rap pra quê?
Porque amo e porque é a única coisa que sei fazer para viver [risos]. Amo fazer música. A minha mensagem é a de liberdade, de que é preciso se manter fiel à sua verdade, mas com liberdade para experimentar musicalmente.

Qual a cara do rap brasileiro atual?
Acho muito diverso, não dá pra colocar dentro de uma categoria. Tem muita gente misturando muita coisa. Talvez seja essa a cara: muitas misturas e experimentações.

O que de mais importante aconteceu na cena do rap nos últimos tempos –por exemplo, nesses 12 anos em que os Racionais não lançavam CD de inéditas?
Acho que foi a possibilidade de artistas como Criolo, Emicida e Cone Crew, entre outros, se inserirem no mercado de forma ostensiva sem depender de gravadora. No caso do Emicida, especialmente, teve a inovação com relação ao merchandising também. Era uma banquinha de camisetas, hoje é uma grande loja virtual.

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