'Não precisamos ficar provando mais nada', diz KL Jay, dos Racionais

Até pouco tempo atrás rolava uma mentira sobre o KL Jay na internet. O aniversário dele é no dia 10 de agosto, e não em novembro –como constava, inclusive, no site oficial dos Racionais MC's, grupo do qual o DJ é um dos quatro pilares de fundação.

O equívoco foi revelado logo no início da entrevista, quando a sãopaulo estava prestes a desejar feliz aniversário atrasado. "É mole?!", questionou o músico, rindo, antes de ligar para a assessora de imprensa e pedir para corrigirem o erro.

Os repórteres se encontraram com Kleber Simões, 45, no penúltimo mês de 2014, por acaso um dia depois do lançamento de "Cores e Valores", primeiro álbum de músicas inéditas do grupo desde 2002. Foi numa quarta-feira, dia da semana em que ele mantém noites de discotecagem na Matilha Cultural, no centro de São Paulo.

Por mais de uma hora, o vegetariano, que na infância sonhava em ser astronauta, falou sobre o novo disco, as conquistas na carreira, a relação com a polícia e racismo, alternando entre inconformismo, entusiasmo e gargalhadas –sem dever, nem temer.

"A gente já tá maduro o suficiente pra saber que cada um segura o seu B.O. individualmente", garante KL Jay, que, recentemente, voltou a apresentar um programa. Ele comanda o "Estamos Vivos", no site Noisey, em que acompanha o cotidiano de nomes do rap atual.

Leia abaixo a conversa com o DJ do grupo de rap que celebra 25 anos de carreira e, na noite deste sábado (20), realiza show de apresentação oficial do mais recente trabalho, no Espaço das Américas, na zona oeste da capital.

*

sãopaulo - Qual é a batida de São Paulo?
KL Jay - É a batida crua. Crua como a cidade é. É igual à batida de Nova York. É, por exemplo, "Quanto Vale o Show?". É "Capítulo 4". Entendeu? Seco, cru e, ao mesmo tempo, ritmado. Intenso. Tenso. Tenso e alegre ao mesmo tempo. Não sei se me entende... Pesado, mas alegre. Tenso e alegre. Não tenso triste, que te joga para baixo. São Paulo é isso. É concreto. Duro. Mas ao mesmo tempo livre.

Qual a diferença de fazer música aos 20 poucos anos e fazer aos 45?
Você está maduro, espiritual e mentalmente, mas está com a mesma disposição como quando tinha 20. Só que a mente pensa diferente, vê o mundo diferente e tem a experiência da vida. Então, é a melhor fase. Agora que está bom. Agora, está ótimo. O hip-hop no Brasil está na melhor fase e a tendência é melhorar.

O rap conquistou o espaço que esperava quando iniciou a carreira?
Conquistar o espaço ainda depende de outras circunstâncias, de um pouco mais de tempo, mas estamos na melhor fase. Antes, a gente engatinhava. Aprendemos a andar. Agora temos que correr e dar voltas na pista. Aprender a correr e dar várias voltas na pista significa ter estrutura, ter dinheiro, ter rádio, programa de TV, entendeu? E infelizmente o país não ajuda. O país tem muitos problemas tributários, de dinheiro, de educação, de formação.

Por que os Racionais MC's fizeram e fazem tanto sucesso?
Vejo um lance espiritual, sinceramente. É uma missão que a gente veio cumprir. Racionais já estavam juntos 400 anos atrás. A gente se encontrou de novo para acabar de cumprir a missão. Somos quatro pessoas de realidades diferentes, de locais diferentes, que se encontraram com um propósito musical. Olhando a mesma coisa, com o mesmo objetivo, entendeu? A gente veio para mudar o país de uma certa maneira, para ajudar a mudar o mundo. O hip-hop trouxe muita autoestima. Tipo, a pessoa não para para tirar foto com você. Ela para para falar: "Obrigado, você mudou a minha vida. Sou tal pessoa hoje porque ouvi vocês 15 anos atrás." Então, é muito sério.

Como se sente em relação a isso?
Privilegiado em realmente cumprir o que vim para fazer, como DJ sozinho e como DJ dos Racionais. É um privilégio tocar para as pessoas, fazê-las se divertirem, terem esperança, se esquecerem dos problemas ali no momento que você está tocando.

Dá nervosismo voltar a lançar um disco depois de tanto tempo com os Racionais?
Ah, é uma responsabilidade de fazer um trabalho bem feito. Nervosismo não mais. A gente não precisa ficar provando mais nada, não precisa mais daquela coisa: "Tem que vender, tem que arrebentar". A gente fez o trabalho bem feito e tá aí. Trabalho até curto. Não são nem poucas músicas, é pouco tempo de música. Brinquei com eles: "Isso é uma mixtape". Eles: "Não fala isso não".

Por quê?
Ah, tem a ver com o mundo de hoje. Tudo rápido, poucas ideias, sem esticar o chiclete, sem ser chato. Não pode ser chato. Tem músicas que são maiores, de três, quatro minutos, e que não são chatas. É legal esse lance de uma música entrar na sequência da outra, dá aquele vontade de ouvir mais. Você ficar voltando para ouvir. Isso te instiga.

E retrata como sempre a sociedade, a periferia?
Não só estamos retratando isso, como abrimos o leque para outras ideias. Isso é evolução. A gente fez um disco moderno. Não temos problema de falar de amor, da nossa história. Não temos problema também em continuar falando da perseguição. Não temos mais problema em falar do dinheiro, de ganhar o dinheiro. O dinheiro faz as coisas acontecerem. Não temos problemas de continuar falando também em protestar, de falar da perseguição da polícia, do Estado, do racismo, o que acontece no bairro. Abriu-se o leque e isso é bom, muito bom.

Recentemente, ocorreram protestos nos EUA por conta da morte de negros. Por que no Brasil não há reação semelhante?
O que se esperar do mundo que se alimenta do assassinato dos animais? Assassinatos, violência. Porra, no Brasil a polícia mata mais de 12 mil pessoas por ano. Nos EUA, a polícia mata 400 e eles acham um absurdo. O que se esperar de um país que não prioriza a educação, a tecnologia e a saúde? Que não prioriza o bem comum? Que não prioriza as pessoas? O Brasil é colônia, é ditadura ainda, é escravocrata ainda. É um país que tem um abismo de diferença entre pobres e ricos.

Numa entrevista para a Folha em 1994, foi questionado se você tinha inimigos. Você disse que era a PM, e que ela só não apagava os Racionais pra não acontecer uma guerra civil.
[Gargalhada] Tem um fundo de verdade.

Como está a sua relação agora em relação à Polícia Militar?
Bom, não enxergo mais a polícia. Enxergo o Estado. A polícia trabalha para o Estado. Demorei muitos anos pra entender isso. Não é a polícia. A polícia tem racistas, homens violentos, assassinos lá dentro. Mas trabalha para o Estado. O grande chefe da polícia é o governador. Ele é o chefe. Se ele chegar e falar assim: "Ô, meu, cês é louco? Cês tá matando gente pra caraio! Para com essa porra aí!".

Já foi vítima de racismo?
Ainda sou. Mas o grande lance é que não me coloco mais na posição de vítima. Racismo é doença. A vítima pra mim é quem começa o racismo. Eu me coloco numa posição de ver, acontecer e falar: "Putz, coitada dessa pessoa".

Pode lembrar uma situação?
As mulheres com bolsa na rua ainda seguram a bolsa com força quando eu estou passando do lado delas. É verdade! Acham que vou roubar. Sabe o que é muito louco para quem sofre racismo? Às vezes, eu reclamava, ficava triste. Queria ser aceito, que as pessoas não escondessem a bolsa de mim ou que quando eu entrasse no restaurante ninguém me olhasse. Hoje, penso: "São doentes, acham que são melhores do que eu".

Recentemente, houve o caso do goleiro Aranha, que torcedores o chamaram de macaco.
O Brasil permite! Os clubes permitem! A televisão permite! A cultura faz isso. A cultura eu acho que é o maior meio de escravizar você, cara.

O que faria? Como reagiria?
Eu? Faria assim: "AQUI Ó, PRA VOCÊS [mostrando os dedos médios]!". Tem que tirar onda em cima dos caras! [risos] Tem que mostrar que eles é que são loucos! Não é pra ter medo, mano. Eu falaria para o juiz: "Para essa porra aí! Que porra é essa?! O senhor tá vendo os caras falarem essa merda aí? Tá passando pano pros cara, porra? PARA ESSA PORRA DESSE JOGO!". Eu ia fazer escândalo, mano! Mas os caras mexem com quem sabe que podem mexer, né? Eles sabem da resposta [de vir falar comigo]. As pessoas sabem as declarações do Brown, do KL Jay, dos Racionais.

Há pouca presença do negro em toda a sociedade?
Com certeza. Pouca mesmo, em qualquer cargo. Os pretos tão tudo escondido, nem saem na rua direito. Os que saem são corajosos. Ou os que nem sabem o que é racismo. Os pretos vivem escondidos. É VERDA-DE. Os pretos vivem escondidos.

A vida mudou muito do fim da década de 1980 pra cá? Acha que a cidade está menos desigual?
São Paulo está um pouco melhor, sim. Não posso negar. Tá um pouco melhor, sim. Ainda faltam muitos quilômetros de metrô, por exemplo. Falta linha de ônibus, falta emprego. Mas está melhor. Tá mais democrática.

Em 2001, na Folha, você disse que o rap era encarado como "música de moleque, ainda, de marginal, de bandido, e não é assim".
Era mesmo. Mudou bastante. Hoje, é encarado como coisa de gente grande. Como música. É um nicho que obteve o seu respeito. De gente competente, que faz música, produz show. Tem gente competente fazendo rap. Esses novos que estão surgindo vieram com a mentalidade próspera, para frente.

O que você sonhava quando começou? E o que sonha agora?
Eu queria ser astronauta! Eu queria ser isso quando eu tinha 5, 6 anos. Hoje, quero continuar sendo DJ. Meu sonho talvez... Quero ser milionário. Não só ter um milhão, mas vários. Quero ter várias empresas, ajudar um monte de gente. Colaborar. Meu sonho é contribuir para um país melhor. Um mundo melhor. Quero ter restaurante vegetariano, frota de carro de luxo pra levar as pessoas pra viajar, pra levar no aeroporto. Quero ter um monte de coisas.

Qual a sua parcela de responsabilidade por todo mundo ter virado gente grande?
Hip-hop é estilo de vida. Convivo 24h. Então, para mim, a minha parcela de responsabilidade é de 100%. Para o bem e para o mal. Se eu fizer merda, estarei dando o exemplo. Se eu acertar, estarei dando o exemplo.

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