Para cineasta, 'cemitério reproduz a lógica arquitetônica da cidade'

Para criar espaço no cemitério, um aprendiz de coveiro é designado para recadastrar os túmulos. Assim, surgiram novos lotes para venda. Ares sobrenaturais se misturam ao musical e à comédia, que dão o tom de "Sinfonia da Necrópole", que tem pré-estreia marcada para esta semana.

O filme da cineasta paulista Juliana Rojas, 34, codiretora de "Trabalhar Cansa", faz um paralelo entre o microcosmo de um cemitério e a realidade de São Paulo —a especulação imobiliária e a divisão de trabalho. A produção buscou referências em longas de São Paulo da década de 1980 e 1990 —entre eles "Lua de Cristal", com a Xuxa, e "Cidade Oculta", de Chico Botelho.

Sinfonia da Necrópole - CCSP - sala Paulo Emílio - r. Vergueiro, 1.000. Liberdade, tel. 3397-4002. Qua. (16): 20h30. R$ 1.

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A maior parte de "Sinfonia da Necrópole" foi filmada em cemitérios. Como foi explorá-los?
Gosto bastante de cemitérios, é um espaço tranquilo. Também acho interessante observar os túmulos, que oferecem um panorama histórico da cidade. No roteiro, era para o filme ser inteiramente gravado no cemitério do Araçá. Mas o Serviço Funerário pediu para que distribuíssemos a filmagem em mais de um. Gravamos no Araçá, no Santíssimo Sacramento (particular, grudado no Araçá) —que foi onde fizemos as cenas noturnas—, no da Consolação e no da Vila Mariana.

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O que descobriu nas filmagens?
O cemitério do Araçá é muito grande e tem claramente uma divisão dos túmulos. Na entrada, eles são mais luxuosos, túmulos de mármore, alguns têm estátuas. Quando você vai descendo, vê os mais pobres. Foi aí que surgiu a história. A geografia e a arquitetura do cemitério do Araçá remetem também ao que a gente tem na sociedade: existem os espaços que são mais da classe alta e os espaços de periferia, mais pobres. Você tem uma parte alta e uma parte baixa.

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No filme, há um paralelo com a especulação imobiliária a partir da reorganização dos túmulos. De que forma esse universo se insere na cidade?
Eu moro em São Paulo há quase 20 anos e o que a gente vê é isso. A gente sente a questão da especulação imobiliária por culpa do aumento dos preços para moradia. Muitas pessoas acabam se mudando para bairros mais afastados por culpa da alta de preços. Tem a questão de derrubarem as coisas para construírem prédios muito grandes, para fazer uma exploração comercial dos espaços da cidade. Nisso você vê derrubarem casas que tinham uma importância histórica também, aí vai descaracterizando a cidade. Essa exploração tem a ver com o crescimento, mas é uma exploração econômica do crescimento. No filme é um pouco essa lógica: por culpa do crescimento da cidade, faltam túmulos e eles fazem o processo de reutilizar os túmulos abandonados para construir túmulos novos, para serem vendidos também. Os que estão abandonados acabam sendo esquecidos. É a lógica que acaba oprimindo quem é mais pobre.

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Há uma metáfora de São Paulo ser a necrópole do título?
A gente tentou pensar o cemitério como se fosse uma cidade. Há também as representações do que seria uma comunidade. O administrador, que é o patrão, os coveiros, que são os trabalhadores. Não é um filme pesado. Quando falo que o cemitério é como uma cidade, não é que eu queira lançar um aspecto sombrio sobre São Paulo. É mais o contrário. O que queremos é conseguir ver o cemitério também como um microcosmo. Como um espelho da metrópole, não o contrário. O cemitério reproduz a lógica arquitetônica da cidade. É uma lógica de divisão de classes, de diferença econômica.

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Nos seus filmes, muita coisa expira o sobrenatural. Tem algo em particular que te inspira?
É uma coisa que eu trabalho no filme porque eu acho interessante falar como que o imaginário fantástico representa questões que são reais pra gente. No caso do "Sinfonia" isso também ocorre. Ele é um filme mais leve que os meus outros filmes, pois ele tem uma atmosfera mais de comédia. Mas ele tem esses elementos sobrenaturais também. No caso de "Sinfonia" era mais para falar dessas questões. O que se fala no filme também é sobre esse processo de reurbanização do cemitério. O sobrenatural é mais sobre essas pessoas desses túmulos que estão sendo esquecidos nesse processo capitalista, de exploração imobiliária do cemitério.

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Como as cenas musicais surgiram na construção do filme, que tinha um tema que poderia pender mais para o suspense e até o terror?
Eu queria que as pessoas conseguissem enxergar as relações humanas e as peculiaridades de uma comunidade em um cemitério, sair dessa imagem mais pesada que a gente tem, mais lúgubre, que é ver o cemitério como um lugar de morte. Eu achava importante o filme ser leve e ter um tom lúdico. Pensei em fazer musical porque eu acho que ajuda a criar esse distanciamento. Quando começa a tocar uma música você entende que não é uma coisa que busca ser totalmente naturalista. Para criar um distanciamento crítico e também para dar uma leveza no filme.

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