No projeto 'Aceita?', Moisés Patrício fotografa o que a sociedade descarta

Moisés Patrício, 28, desculpa-se pela poeira no sobrado da família na Vila Industrial, zona leste de São Paulo. Em reforma, a casa de fachada alaranjada, com roupas penduradas na sacada, está ganhando paredes de alvenaria no lugar da estrutura de madeira. Um sonho antigo da mãe dele, Madalena, que economizou anos de salário para fazer a obra.

Enquanto isso, desenhos e livros de seu filho estão a poucos metros dali, amontoados em um pequeno cômodo na casa do vizinho da frente.

Quase todos os dias, Moisés deixa o bairro (a pé, de trem e metrô) rumo a seu ateliê na avenida Paulista –o espaço é um empréstimo da amiga e também artista Fabiana Gabaskallás.

No deslocamento entre a periferia onde vive e uma das regiões mais efervescentes da capital, ele reflete sobre seu trabalho. Pensa tanto que o trajeto, que deveria durar uma hora, às vezes leva o dobro de tempo.

"As coisas estão acontecendo mais rápido", diz o artista, agora representando o Brasil na Bienal de Dacar, que começou na última quinta (3) e ocorre até o início de junho na capital senegalesa. Vitrine da arte contemporânea africana, evento existe desde 1996.

Ele se tornou conhecido após idealizar a performance "Presença Negra", que já foi repetida 16 vezes desde 2013. Nela, Moisés e outros afrodescendentes visitam o "espaço branco" das galerias durante aberturas de exposições –explicitam, assim, a rara presença de negros no circuito.

Desde que apareceu no cenário da arte contemporânea, o artista conseguiu impor também sua presença. Realizou individual na galeria Gabinete D; participou de exposições coletivas importantes, como "A Nova Mão Afro-Brasileira", no museu Afro Brasil; viajou pela primeira vez de avião para expor trabalhos na galeria Ecarta, em Porto Alegre; e foi um dos indicados ao Pipa 2016 (prêmio organizado por investidores de arte que distribui os maiores valores no Brasil a jovens artistas).

Moisés vê a cena para uma foto. Para no meio do caminho, pega o celular no bolso, retira-o e recoloca a bateria. Liga o aparelho novamente e consegue, após mais de um minuto, fazer funcionar o aplicativo Instagram. O artista coloca na palma da mão direita o papel que achou no chão, em que se lê "feito com carinho para você comer agora". Estabiliza a mão esquerda, fotografa e escolhe os níveis de brilho, contraste e sombra. Adiciona, então, uma legenda, mas não posta a foto. Só mais tarde, quando tiver internet disponível.

Nessa série, intitulada "Aceita?", Moisés fotografa suas próprias mãos oferecendo parte daquilo que é descartado pela sociedade. Quando começou, em 2013, planejava postar uma imagem por dia durante dois anos na conta de Instagram @moisespatricio. Mais de três anos depois, ainda faltam cerca de cem para concluir o trabalho.

"Às vezes fico com vontade de fazer uma fotografia, mas o celular não corresponde. Não é sempre que tenho internet", afirma. "Estou aprendendo a lidar com o sentimento de frustração."

Na Vila Industrial, as crianças o conhecem pelo apelido de Sombra, que é como assina suas pichações nos muros da região. Ele aponta uma delas, onde está escrito "Eu prefiro perder a guerra e ganhar a paz".

ATIVISMO E REPRESENTAÇÃO

Até conhecer o artista Paulo Nazareth, Moisés se dedicava mais à pintura. Alguns exemplos dessa fase estão hoje guardados em seu ateliê –desenhos em grandes dimensões de fábricas abandonadas. "Foi o Paulo quem me mostrou a importância de explorar questões políticas e raciais na minha obra", conta. Os dois se conheceram após perceberem que eram os únicos afrodescendentes na abertura da Bienal de São Paulo de 2012.

Aluno desde os nove anos do pintor argentino Juan J. Balzi, que manteve na zona leste o projeto de educação "Meninos da Arte" entre 1994 e 2001, Moisés é o único de sua turma que conseguiu se dedicar integralmente à arte. De aprendiz, virou assistente do mestre e, mais tarde, formou-se em artes visuais pela USP. De 2003 a 2012, foi representado pela galeria Mônica Filgueiras. Após a morte da marchand, migrou para a Gabinete D e, desde que o espaço fechou as portas, está sem representação.

Para custear a produção que apresenta na Bienal de Dacar –cem imagens de "Aceita?", além de um slide com 700 fotografias–, o artista revela ter vendido por conta própria mais de 60 trabalhos da série, por valores entre R$ 250 a R$ 500.

Antes de embarcar, chegou a pensar que não conseguiria participar do evento. Além de precisar de um celular novo para continuar produzindo, preocupava-se com as despesas da passagem e hospedagem. "Tenho limitações financeiras que dificultam a manifestação das minhas ideias e projetos", escreveu em sua página do Facebook, depois de ter lançado a campanha "Mande o Moisés Patrício para a África".

Um mês depois, já em solo africano, o artista diz estar impressionado com a beleza das mulheres, "verdadeiras rainhas", a generosidade do povo e a perspicácia dos comerciantes. "É legal ser negão no Senegal!"

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