Símbolo da boemia paulistana, Bar Brahma celebra 70 anos de existência

De 15 em 15 minutos, algum habitué do Bar Brahma saca o celular para registrar imagens das placas da esquina eternizada por Caetano Veloso ou dos detalhes do estabelecimento localizado no cruzamento entre as avenidas Ipiranga e São João, cuja decoração inclui lustres de cristais, molduras de gesso folheadas a ouro e portas de peroba. Tão comuns quanto essas cenas são as viagens dos chopes das torneiras às mesas (em dias mais movimentados, são consumidos 16 mil litros da bebida), sempre com os sagrados três dedos de colarinho, ou os shows dos Demônios da Garoa.

Calcula-se que o grupo já tenha passado de mil apresentações no local, superando em larga margem o segundo nome mais frequente na história da casa. Dois dias antes de sua morte, aos 85 anos, Cauby Peixoto perguntava a uma acompanhante, no leito do hospital Sancta Maggiore, quando iria começar sua nova temporada no lugar. Foram mais de 600 exibições entre 2003 e 2016.

Um dos bares mais antigos da capital, o Brahma ganhou o status de ponto turístico etílico ao se manter fiel às tradições. "É um local que tem alma paulistana", afirma o jornalista Douglas Nascimento, responsável pelo site São Paulo Antiga. O estabelecimento recebe cerca de 20 mil pessoas por mês, sendo que mais da metade desse público vem de fora da capital.

Essa turma não quer saber das peripécias nas pick-ups do DJ do momento, de cozinha molecular ou de exibições de mixologistas. Prefere chope bem tirado, standarts de Adoniran Barbosa e porções clássicas de boteco. Em 2018, o local completa sete décadas, um feito e tanto em uma metrópole na qual um terço dos estabelecimentos do tipo fecha as portas antes de um ano de funcionamento.

As comemorações começaram em 25 de janeiro, de forma a coincidir com o aniversário da cidade. Convidado especial da ocasião, Gilberto Gil apresentou-se em um trio elétrico estacionado em frente ao Brahma. As festividades dos 70 anos incluem ainda promoção de chope até dezembro (preço de R$ 6,99, contra os R$ 9,40 habituais), um concurso de fotos sobre o centro e apresentações dos Demônios da Garoa, além de uma exposição e um minidocumentário sobre a banda criada em 1943.

A São Paulo da época do nascimento do Brahma tinha cerca de 2 milhões de habitantes (contra 12,2 da população atual), e o centro concentrava a vida cultural da cidade. Artistas, jornalistas e intelectuais frequentavam a região. O clima era de sofisticação, a ponto de homens só poderem entrar nos cinemas de rua vestindo paletós. "Era a Oscar Freire da época", compara Nelson Rocha, diretor de comunicação da Fábrica de Bares, grupo que controla o Brahma.

O movimento chamou atenção de um imigrante alemão, Heinrich Hillebrecht, que vislumbrou no térreo do prédio Independência a oportunidade de montar um negócio.

"Um novo bar poderia aproveitar o agito que já havia naquele pedaço", diz José Eduardo de Assis Lefèvre, especialista em história da arquitetura e urbanismo e autor do livro "De Beco a Avenida, a História da Rua São Luiz" (editora Edusp).

Com apoio da Brahma, cervejaria carioca que pretendia na época aumentar sua participação no mercado paulistano, Hillebrecht fundou em 1948 o bar. O estabelecimento tinha dois ambientes, que não se conectavam e possuíam entradas independentes.

O piano-bar, na avenida São João, e o restaurante, na avenida Ipiranga –o Brahma só ocuparia integralmente a esquina com a compra de um terceiro imóvel, em 2006. A confeitaria e boate Marabá estava entre os vizinhos mais badalados. Hillebrecht já tinha experiência como empreendedor, ao vencer uma concorrência pública para arrendar, em 1944, o Grande Hotel Campos de Jordão, atual Hotel Senac.

O Brahma rapidamente ganhou fama e público na Ipiranga com a São João. Seu piano-bar virou um dos pontos de encontro mais movimentados da cidade. Batiam cartão por lá estudantes de direito do Largo São Francisco, artistas populares como Orlando Silva e Vicente Celestino e muitos políticos, a exemplo de Jânio Quadros, que frequentou o local por muitas décadas.

"Uma vez, servi para ele uma cachaça, mas o que ele gostava mais de consumir no bar era o chope", lembra Antonio Vitorino Filho, 59. Atual maître do Brahma, ele começou a trabalhar ali nos anos 1980. Celebridades de diferentes áreas continuam aparecendo por lá. A cantora sertaneja Marília Mendonça fez jus à fama. Certa vez, a rainha da sofrência foi vista derramando lágrimas em uma das mesas e sendo consolada por uma garçonete.

O movimento do Brahma oscilou ao sabor dos altos e baixos do centro. Depois dos anos 1960, começou a sofrer com a decadência da região. No início da década de 1990, fechou as portas. Em 1997, reabriu, rebatizado como São João 677 e com uma novidade nas torneiras: chope Kaiser.

"Foi um erro, os clientes não gostaram e o negócio não durou seis meses", recorda Vitorino Filho. Em 2001, voltou à cena com o nome original. A festa animada pelos Demônios da Garoa lotou o espaço, mas o público começou a sumir nas semanas seguintes. Naquela época, o movimento de redescoberta do centro de São Paulo ainda não havia engrenado.

Para movimentar o negócio, investiu-se pesadamente em programação musical ao vivo, sobretudo MPB. Nesse ponto da história, as trajetórias do bar e de Cauby Peixoto começam a se confundir. "Quando recebeu o convite para se apresentar na casa, ele não queria ir, pois morava no Rio e achava o local acanhado", conta Nancy Lara, última empresária do cantor. Resolveram fazer uma experiência de duas semanas. O acordo acabou durando 13 anos.

Entre 2003 e 2005, já morando na cidade, bastava Cauby atravessar a rua para chegar ao local de show. Nesse período, ele morava no hotel Excelsior, na São João. Durante o dia, garçons do Brahma levavam quentinhas para o crooner, fã de picadinhos e feijoadas. Atualmente, o Brahma tem uma média de 250 shows por mês. De segunda a segunda, recebe artistas de todas as correntes musicais, do jazz ao blues, do rock ao samba, da MPB ao soul, do pop à bossa nova.

Nos últimos tempos, nomes como Moraes Moreira, Ivo Meirelles, Toquinho e João Sabiá se apresentaram no lugar. Sem falar nos Demônios da Garoa, é claro, destaque da comemoração dos 70 anos da casa. "Se não tocarmos 'Trem das Onze' e 'Saudosa Maloca', o público não deixa a gente sair do palco", brinca Sergio Rosa, integrante da formação atual da banda e filho de Arnaldo Rosa, um dos fundadores do conjunto. "O Brahma virou nossa casa."

*


Bar Brahma
Av. São João, 677, República, tel. 2039-1250. Seg. a qui., das 11h30 à 1h; sex. e sáb., das 11h30 às 2h; dom., das 11h30 às 24h

Publicidade
Publicidade