Perdizes tomba prédios históricos sem abrir mão de novos empreendimentos na zona oeste paulistana

Os primeiros bondes começaram a circular na cidade de São Paulo na virada do século 19 para o 20. Como eram abertos nas laterais, exigiam cuidado dos passageiros, especialmente no embarque e desembarque.

No final dos anos 1920, chegaram os bondes fechados, mais seguros. Graças à cor alaranjada, ganharam o apelido de camarão.

Um deles era o Perdizes 19. Saía da praça do Correio, no centro da cidade, percorria a avenida São João e passava pela praça Marechal Deodoro. Depois, avançava rumo à zona oeste até chegar à rua Tabor, mais tarde rebatizada de Cardoso de Almeida.

Numa velocidade média de 30 km/h, o bonde seguia pela Tabor, passava em frente ao colégio Santa Marcelina e subia mais quatro quarteirões até a rua Caiubi, conhecida como Alto das Perdizes. Era o ponto final.

Vinda de Helvetia, colônia fundada por suíços no interior paulista (hoje um bairro de Indaiatuba), Maria Assumpção Amstalden chegou à capital em 1948 para se juntar à Congregação das Irmãs de Santa Marcelina. "Perdizes era pobre, ainda havia muito mato", lembra-se ela, hoje com 83 anos.

Àquela altura, existiam na região muitas chácaras e terrenos com matagal, onde viviam as aves que inspiraram o nome atual. Ainda não era o bairro da PUC (Pontifícia Universidade Católica), que se instalou em 1950 na rua Monte Alegre, a três quadras do Santa Marcelina, um internato na época.

Como andava só de charrete pelas estradas de Helvetia, a irmã Assumpção se surpreendeu com a novidade que era o bonde.

O barbeiro Carlos Antônio de Moraes, 70, também se animava ao ouvir o barulho das rodas de aço do bonde sobre os trilhos. Morador de lá há mais de cinco décadas, ele pegava o camarão no sentido contrário para ir ao cinema na região central.

No final dos anos 1960, os bondes saíram de cena, mas Perdizes manteve ligação expressiva com a sua história, como poucos bairros paulistanos têm conseguido.

No ano passado, a prefeitura determinou o tombamento de 40 imóveis na região que abrange os bairros de Perdizes, Água Branca e Barra Funda. Desse total, 31 estão em Perdizes. São construções de estilos variados das quatro primeiras décadas do século 20.

De acordo com o Conpresp (conselho municipal de preservação do patrimônio histórico), o tombamento foi pedido por moradores que temiam a perda de identidade local.

Entre esses imóveis, está o majestoso complexo formado pela capela e pelo colégio Santa Marcelina, inaugurado em 1927. É lá onde vivem a irmã Assumpção e outras 17 freiras, que administram o local.

Projetada pelo italiano Domenico Marchetti, a capela é uma réplica da Casa Madre, templo em Milão, cidade-sede da congregação marcelina. Pode ser visitada nos horários de missa. Ao longo da semana, acontecem sempre às 6h10 (isso mesmo, 6h10). Aos sábados, às 18h, e domingos, 7h30 e 9h.

Para a irmã Assumpção, o tombamento do espaço é bem-vindo por "levar o colégio ao conhecimento do povo".

Outra entusiasta de ações de conservação é a publicitária Patricia Ferreti, 27, que se mudou para o bairro 12 anos atrás. "Existe equilíbrio entre prédios e casas. Não há por aqui tantos edifícios como em Pinheiros. E entre os prédios, muitos são pequenos."

Para o também publicitário Rafael de Campos, 37, "os imóveis antigos formam um retrato histórico importante". Ele mora na região há uma década.

Antes do tombamento desses casarões em 2018, outros de Perdizes já tinham a preservação estabelecida por lei, como o prédio Cardeal Mota (o edifício antigo da PUC) e o conjunto dos dominicanos, que inclui a igreja de São Domingos, na rua Caiubi.

O publicitário mora em um apartamento na rua Dr. Franco da Rocha, muito próximo de um dos imóveis recém-tombados, um chalé construído entre 1911 e 1914 na esquina da rua dele com a Dr. Homem de Melo.

Em bom estado de conservação, o espaço abriga hoje uma farmácia. Um painel na frente da casa indica que ela pertenceu ao psiquiatra Francisco Franco da Rocha, um dos pioneiros no Brasil no tratamento de doenças mentais com técnicas modernas.

Na verdade, segundo o Conpresp, Franco da Rocha morou no bairro, mas quem viveu naquele chalé foi Claro Homem de Melo, também psiquiatra.

É pelas ruas batizadas com os nomes desses médicos que Rafael de Campos sai à cata de amoras junto com a sua afilhada. Para ele, uma vantagem de Perdizes é se manter como um lugar tranquilo próximo de áreas mais movimentadas, como a Vila Madalena.

A julgar pelas dezenas de entrevistas feitas pela revista com moradores, a localização é um dos principais atributos da região. Por outro lado, Campos se preocupa com a construção de prédios de grande porte.

Também é o que incomoda a psicanalista Ligia Polistchuck, 37. "Parece haver um crescimento desordenado dos edifícios", afirma. Para ela, o trânsito na rua em que vive, a Doutor Homem de Melo, tem aumentado nos últimos anos por conta dos novos empreendimentos.

Uma das travessas da Homem de Melo é a rua Ministro Godói, onde ficam três casarões que passaram a ser protegidos em 2018. Um deles é a Casa Tombada, na qual são promovidos cursos de pós-graduação e workshops, além de exposições e peças de teatro. Uma pesquisa pela memória da região é outra das atividades do espaço, que fica em frente ao parque da Água Branca.

Um dos sócios da Casa Tombada, Giuliano Tierno, 41, aprecia características do bairro, como a arborização e o vaivém de estudantes -além da PUC, há faculdades como a Santa Marcelina. Mas ele se preocupa com a velocidade da transformação urbanística. "Já houve uma preservação maior", diz.

O bairro não está imune à expansão imobiliária, mas ela ocorre de forma mais lenta do que em áreas vizinhas da zona oeste, segundo o Secovi-SP (sindicato da habitação). Foram 308 unidades lançadas em Perdizes em 2018. Pinheiros e Lapa registraram mais do que o dobro cada um -o primeiro com 800; o segundo com 838.

Para Sueli Pacheco, diretora da Pacheco Imóveis, regiões como Pinheiros e Lapa oferecem mais áreas propícias para construção de prédios do que Perdizes. Mas ela ressalta que o bairro registrou um aumento de lançamentos de cerca de 15% neste primeiro trimestre em comparação com o mesmo período do ano passado.

De acordo com a executiva, Perdizes tem se revelado cada vez mais atrativa, especialmente para as famílias de classe média alta, pela proximidade com estações do metrô, Sumaré e Barra Funda, além de locais como o parque da Água Branca e o Allianz Parque, estádio do Palmeiras.

Para a maior parte dos moradores ouvidos pela sãopaulo, o avanço imobiliário só é bem-vindo se respeitar o passado histórico do bairro. "Precisamos ficar alertas", diz Giuliano Tierno, da Casa Tombada.

Moradores ilustres de Perdizes

Francisco Franco da Rocha (1864-1933)
O psiquiatra, um dos primeiros a usar técnicas modernas para o tratamento de doenças mentais no Brasil, viveu ali no início do século 20

Décio Pignatari (1927-2012)
Um dos pais da poesia concreta, morou lá entre as décadas de 1950 e 1990. Tomava cerveja com Tom Zé no Krystal, bar na esquina da Cardoso de Almeida com a Homem de Melo

Tom Zé
Compositor de "São, São Paulo", o artista, que nasceu em Irará, na Bahia, mora no bairro há quase meio século

Augusto de Campos
Outro dos pioneiros da poesia concreta, nasceu na avenida Angélica, em Higienópolis, mas vive em Perdizes desde a década de 1940

Luiz Ruffato
Autor de romances como "Eles Eram Muitos Cavalos", o escritor vive no bairro desde o início da década de 1990

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