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A
tirania do dinheiro e da informação está na
base do atual desarranjo do capitalismo global
(26/9/1999)
A
normalidade da crise
MILTON SANTOS
A
história do capitalismo pode ser dividida em períodos,
pedaços de tempo marcados por uma certa coerência entre
as suas variáveis significativas, que evoluem diferentemente,
mas dentro de um sistema. Um período sucede a outro, mas
não podemos esquecer que os períodos são, também,
antecedidos e sucedidos por crises, isto é, momentos em que
a ordem estabelecida entre as variáveis, mediante uma organização,
é comprometida. Torna-se impossível harmonizá-las
quando uma dessas variáveis ganha expressão maior
e introduz um princípio de desordem.
Essa foi a evolução comum a toda a história
do capitalismo, até recentemente. O período atual
escapa a essa característica porque ele é, ao mesmo
tempo, um período e uma crise, isto é, a presente
fração do tempo histórico constitui uma verdadeira
superposição entre período e crise, revelando
características de ambas essas situações.
Como período e como crise, a época atual mostra-se,
aliás, como coisa nova. Como período, as suas variáveis
características instalam-se em toda a parte e tudo influenciam,
direta ou indiretamente. Daí a denominação
de globalização. Como crise, as mesmas variáveis
construtoras do sistema estão continuamente chocando-se e
exigindo novas definições e novos arranjos. Trata-se,
porém, de uma crise persistente dentro de um período
com características duradouras, mesmo se novos contornos
aparecem.
Este período e esta crise são diferentes daqueles
do passado, porque os dados motores e os respectivos suportes, que
constituem fatores de mudança, não se instalam gradativamente
como antes, nem tampouco são o privilégio de alguns
continentes e países, como outrora. Tais fatores dão-se
concomitantemente e se realizam com muita força em toda parte.
Defrontamo-nos, agora, com uma subdivisão extrema do tempo
empírico, cuja documentação tornou-se possível
por meio das técnicas contemporâneas. O computador
é o instrumento de medida e, ao mesmo tempo, o controlador
do uso do tempo. Essa multiplicação do tempo é,
na verdade, potencial, porque, de fato, cada ator - pessoa, empresa,
instituição, lugar- utiliza diferentemente tais possibilidades
e realiza diferentemente a velocidade do mundo. Por outro lado,
e graças sobretudo aos progressos das técnicas da
informática, os fatores hegemônicos de mudança
contagiam os demais, ainda que a presteza e o alcance desse contágio
sejam diferentes segundo as empresas, os grupos sociais, as pessoas,
os lugares. Por meio do dinheiro, o contágio das lógicas
redutoras, típicas do processo de globalização,
leva a toda parte um nexo contábil que avassala tudo. Os
fatores de mudança acima enumerados são, pela mão
dos atores hegemônicos, incontroláveis, cegos, egoisticamente
contraditórios.
O processo da crise é permanente, o que temos são
crises sucessivas. Na verdade, trata-se de uma crise global, cuja
evidência tanto se faz por meio de fenômenos globais
como de manifestações particulares, neste ou naquele
país, neste ou naquele momento, mas para produzir o novo
estágio de crise. Nada é duradouro.
Então, neste período histórico, a crise é
estrutural. Por isso, quando se buscam soluções, o
resultado é a geração de mais crise. O que
é considerado como solução parte do exclusivo
interesse dos atores hegemônicos, tendendo a participar de
sua própria natureza e de suas próprias características.
Tirania do dinheiro e tirania da informação são
os pilares da produção da história atual do
capitalismo globalizado. Sem o controle dos espíritos seria
impossível a regulação pelas finanças.
Daí o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade
do comportamento dos atores hegemônicos, que agem sem contrapartida,
levando ao aprofundamento da situação, isto é,
da crise.
A associação entre a tirania do dinheiro e a tirania
da informação conduz, desse modo, à aceleração
dos processos hegemônicos, legitimados pelo "pensamento
único", enquanto os demais processos acabam por ser
deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se hegemonizados.
Em outras palavras, os processos não hegemônicos tendem
ou a desaparecer fisicamente, ou a permanecer, mas de forma subordinada,
exceto em algumas áreas da vida social e em certas frações
do território onde podem manter-se relativamente autônomos,
isto é, capazes de uma reprodução própria.
Mas tal situação é sempre precária,
seja porque os resultados localmente obtidos são menores,
seja porque os respectivos agentes são permanentemente ameaçados
pela concorrência das atividades mais poderosas.
No período histórico atual, o estrutural (dito dinâmico)
é, também, crítico. Isso se deve, entre outras
razões, ao fato de que a era presente se caracteriza pelo
uso extremado de técnicas e de normas. O uso extremado das
técnicas e a proeminência do pensamento técnico
conduzem à necessidade obsessiva de normas. Essa pletora
normativa é indispensável à eficácia
da ação.
Como, porém, as atividades hegemônicas tendem a uma
centralização, consecutiva à concentração
da economia, aumenta a flexibilidade dos comportamentos, acarretando
um mal-estar no corpo social.
A isso se acrescente o fato de que, graças ao casamento entre
as técnicas normativas e a normalização técnica
e política da ação correspondente, a própria
política acaba por instalar-se em todos os interstícios
do corpo social, seja como necessidade para o exercício das
ações dominantes, seja como reação a
essas mesmas ações. Mas não é propriamente
de política que se trata, mas de simples acúmulo de
normatizações particularistas, conduzidas por atores
privados que ignoram o interesse social ou que o tratam de modo
residual. É outra a razão por que a situação
normal é de crise, ainda que os famosos equilíbrios
macroeconômicos se
instalem.
O mesmo sistema ideológico que justifica o processo de globalização,
ajudando a considerá-lo como o único caminho histórico,
acaba, também, por impor uma certa visão da crise
e a aceitação dos remédios sugeridos. Em virtude
disso, todos os países, lugares e pessoas passam a se comportar,
isto é, a organizar sua ação, como se tal "crise"
fosse a mesma para todos e como se a receita para afastá-la
devesse ser geralmente a mesma.
Mas a única crise que se deseja afastar é a crise
financeira, não qualquer outra. Aí está, na
verdade, uma causa para maior aprofundamento da crise real -econômica,
social, política, moral- que caracteriza o nosso tempo.
Leia mais: Guerra
dos lugares
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