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Áreas
inteiras do Brasil têm sido retiradas do controle do país
(8/8/1999)
Guerra
dos lugares
MILTON SANTOS
Cada
época tem suas verdades e cria os seus mitos. A época
atual é, por definição, mitológica e
dificulta o encontro da verdade.
O imperativo da exportação, sugerido a todos os países
como uma espécie de solução salvadora, é
uma verdade ou apenas um mito? Afirma-se, com muita força,
que os países que não exportam não têm
presente nem futuro, sem explicar cabalmente por quê. A doutrina
é tão forte que, embora isso não seja sempre
reconhecido, chega-se ao paroxismo de agir como se o próprio
território devesse também ser exportado.
Comecemos pela definição de território, na
verdade uma redefinição. Consideremos o território
como o conjunto de sistemas naturais mais os acréscimos históricos
materiais impostos pelo homem. Ele seria formado pelo conjunto indissociável
do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu
uso, ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas
sociais, isto é, uma combinação de técnica
e de política. Os acréscimos são destinados
a permitir, em cada época, uma nova modernização,
que é sempre seletiva. Vejam-se os exemplos das ferrovias
na segunda metade do século 19 e das infovias hoje.
A partir da constituição do Estado moderno, tudo isso
era considerado como base da soberania nacional e da competição
entre nações. O exemplo mais eloquente é o
de Colbert, ministro de Luís 14, engenheiro, geógrafo,
economista, estrategista e estadista, preocupado com o traçado
das estradas e canais na velha França, base, ao mesmo tempo,
do crescimento do país e da sua competição
com os vizinhos e com a Inglaterra. O território, assim visto,
constituía um dado essencial da regulação econômica
e política, já que do seu manejo dependiam os volumes
e os fluxos, os custos e os preços, a distribuição
e o comércio, em uma palavra, a vida das empresas e o bem-estar
das populações. Era por meio desses instrumentos incorporados
ao território que o país criava sua unidade e funcionava
como uma região do Estado. "Regio" tanto significa
região quanto reger, governar.
Com a globalização, o território fica ainda
mais importante, ainda que uma propaganda insidiosa teime em declarar
que as fronteiras entre Estados já não funcionam e
que tudo, ou quase, se desterritorializa. Na verdade, se o mundo
tornou possível, com as técnicas contemporâneas,
multiplicar a produtividade, somente o faz porque os lugares, conhecidos
em sua realidade material e política, distinguem-se exatamente
pela diferente capacidade de oferecer às empresas uma produtividade
maior ou menor. É como se o chão, por meio das técnicas
e das decisões políticas que incorpora, constituísse
um verdadeiro depósito de fluxos de mais-valia, transferindo
valor às firmas nele sediadas. A produtividade e a competitividade
deixam de ser definidas devido apenas à estrutura interna
de cada corporação e passam, também, a ser
um atributo dos lugares. E cada lugar entra na contabilidade das
empresas com diferente valor. A guerra fiscal é, na verdade,
uma guerra global entre lugares.
Por isso, as maiores empresas elegem, em cada país, os pontos
de seu interesse, exigindo, para que funcionem ainda melhor, o equipamento
local e regional adequado e o aperfeiçoamento de suas ligações
mediante elos materiais e informacionais modernos.
Isso quanto às condições técnicas. Mas
é também necessária uma adaptação
política, mediante a adoção de normas e aportes
financeiros, fiscais, trabalhistas etc. É a partir dessas
alavancas que os lugares lutam entre si para atrair novos empreendimentos,
os quais, entretanto, obedecem a lógicas globais que impõem
aos lugares e países uma nova medida do valor, planetária
e implacável. Tal uso preferencial do território por
empresas globais acaba desvalorizando não apenas as áreas
que ficam de fora do processo, mas também as demais empresas,
excluídas das mesmas preferências.
Como as situações se alteram rápida, repetidamente
e de forma inesperada, o território, sobretudo nas áreas
mais afetadas pela modernidade globalizadora, torna-se instável,
nervoso e, também, ingovernável. As crises territoriais
revelam, brutalmente, as crises -nem sempre imediatamente percebidas-
da economia, da sociedade e da política. O caso brasileiro
ilustra de forma explícita essa entrega ao privado da regulação
dos usos do território, sobretudo naquelas suas fatias, pontos
e articulações essenciais. A privatização
extrovertida das vias e meios de transporte e de comunicação
agrava o conjunto de crises.
Importam-se empresas e exportam-se lugares. Impõe-se de fora
do país o que deve ser a produção, a circulação
e a distribuição dentro do país, anarquizando
a divisão interna do trabalho com o reforço de uma
divisão internacional do trabalho que determina como e o
que produzir e exportar, de modo a manter desigualmente repartidos,
na escala planetária, a produção, o emprego,
a mais-valia, o poder econômico e político. Escolhem-se,
também, pela mesma via, os lugares que devem ser objeto de
ocupação privilegiada e de valorização,
isto é, de exportação.
Não é simples metáfora dizer, a partir desse
raciocínio, que está havendo uma entrega acelerada
do território, já que o modelo econômico consagrado
recusa ao país as ferramentas da sua regulação,
pondo-as em mãos outras (geralmente estrangeiras), cujos
projetos e objetivos podem ser inteiramente estranhos ou adversos
ao interesse nacional. É desse modo que áreas inteiras
permanecem nominalmente no território, fazendo parte do mapa
do país, mas são retiradas do controle soberano da
nação.
Leia mais: A
vontade de abrangência
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