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O REI DA FOTOGRAFIA
Império
desenha país
civilizado e exótico
LILIA MORITZ SCHWARCZ
Especial para a Folha
Fotos
Fundação Biblioteca Nacional
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Retratos do Império
Dom
Pedro 2º, em platinotipia (processo de impressão fotográfica
em chapas revestidas de sais de platina) assinada por Joaquim
Insley Pacheco no final do século 19 |
Auguste de Saint-Hilaire, viajante francês que passou pelo Brasil
na primeira metade do século 19, resumia a impressão deixada por esse
imenso Império: “Havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não
havia brasileiros”. O estrangeiro notava uma característica evidente
desde a Independência: uma sociedade centralizada a partir da presença
do monarca, mas destituída de unidade cultural.
O próprio processo de emancipação nacional, marcado pelas vicissitudes
da afirmação de uma monarquia nos trópicos, era visto com preocupação
pelas repúblicas vizinhas, que pouco entendiam a existência de uma
realeza nas Américas.
O Império oscilava, ainda, entre a representação de uma soberania
civilizada, iluminada por sua origem Bragança, Bourbon e Habsburgo,
e a relevância econômica do tráfico de escravos e o impacto desse
tipo de mão-de-obra.
O Império foi pródigo na criação de discursos e imagens que obscureceram
o trabalho cativo. O passado era relembrado de forma enaltecedora,
a partir de uma natureza grandiosa e de índios em cenários românticos;
a realeza surgia destacada e a escravidão era esquecida. Especializado
na confecção de peças comemorativas, espetáculos rituais e iconografias
oficiais, coube ao Estado a tarefa de “inventar um passado e recuperar
o presente”.
O rei tornou-se símbolo do Estado por excelência. Em um primeiro momento
e logo após o golpe da maioridade, em 1840, d. Pedro 2º era quem aparecia
nos óleos, litogravuras e aquarelas, rodeado por emblemas que lembravam
motivos clássicos, mas também por elementos tropicais: o café, a cana,
abacaxis e maracujás, e indígenas que acompanhavam as cenas, pacificamente.
Mas o motivo barroco foi sendo aos poucos alterado. Em primeiro lugar,
a partir dos anos 1860 e logo após a Guerra do Paraguai, o daguerreótipo
e depois a fotografia começaram a fazer parte do acervo do Império.
Alterou-se também a imagem do soberano, que, em vez de aparecer ostentando
suas vestes reais, surgia portando jaquetão, emancipado pela cultura,
um monarca cidadão. Nessas imagens, e a partir dos elementos que adornam
sua figura _ globos, mapas, livros e mais livros _, d. Pedro 2º é
representado como um modelo de civilização.
A fotografia também acompanhou o monarca nas viagens que passou a
empreender a partir dos anos 1870. No país ou no exterior, era a foto
moderna que imortalizava esse Imperador, que costumava dizer que teria
sido o “primeiro monarca fotógrafo”.
No Império, o academicismo ganhava espaço, ao mesmo tempo em que a
paisagem e os trópicos entravam, cada vez mais, no lugar até então
ocupado pelo monarca. Foi a época das grandes telas de Porto-Alegre
e Victor Meirelles, que, com o movimento romântico, escolhiam a natureza
como matéria de beleza e afirmação da nacionalidade. Afinal, se não
tínhamos castelos ou igrejas medievais, aqui estariam a mais bela
flora e o maior dos rios.
A iconografia imperial não foi só abundante: deixou marcas na memória
nacional. Selecionando um certo passado (anterior à escravidão) e
idealizando a natureza, a produção do Segundo Reinado desenhou um
país ao mesmo tempo civilizado e exótico. O investimento girava em
torno desses “nobres selvagens”, que lembravam o modelo de Rousseau.
Estranho caminho esse, sobretudo em um país onde o contraste entre
as pretensões civilizadoras da Corte e a alta densidade de escravos
era flagrante. Longe das luxuosas cortes européias, a capital da monarquia
brasileira possuía, em 1838, cerca de 37 mil escravos, numa população
total de 97 mil habitantes, 75% deles, em média, africanos, o que
sinaliza a importância da população de cor na cidade do Rio de Janeiro.
Os cativos chegavam a representar de dois quintos à metade do total
de habitantes do Império no decurso do século 19. A Corte reunia,
em 1851, a maior concentração urbana de escravos no mundo desde o
final do Império Romano: 110 mil escravos sobre 266 mil habitantes.
A ausência de escravos e de negros nas imagens oficiais comprovaria
não a sua pouca relevância, mas a grande contradição que fragilizava
a segurança do Império.
O final do Segundo Reinado foi marcado por uma batalha de imagens.
De um lado, a seleção do Imperador e do indígena como símbolos diletos:
o mais universal e o mais particular dos símbolos. De outro, as imagens
da mulher republicana e de Tiradentes, novos modelos para novos momentos
políticos.
Mas essa já é uma outra história: nada mais revelador para um Estado
que se preocupou tanto com a construção de sua própria imagem. Éden
e ícone da memória imperial, os trópicos surgiam como cenário romantizado,
por contraposição ao espetáculo “degradado” e escondido das raças
e da mestiçagem.
Lilia Moritz Schwarcz é
professora de antropologia na USP e autora de “As Barbas do Imperador”
(Companhia das Letras)
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