HOME | NOTÍCIAS  | COLUNAS | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | QUEM SOMOS


Envie sua opinião

boca no trombone

"Quem vai melhorar este país somos nós",
Mauricio Antonio

"Por que Marta não fez a obra próximo da casa dela",
Marcio Coronato


palavra do leitor

"Aqui, o PT ganhou as eleições. Mas, sem sombra de dúvidas, perdeu a vergonha",
Pedro Bira

"Em breve, teremos um país vermelho de vergonha!",
Antonio Brandi


16/06/2006
Carta da semana

A riqueza da pobreza


“Nas minhas andanças pelo Brasil, com a alma já muito amolada pela dor pungente da saudade pelo país, pois já vivo há treze anos na Itália, consigo ”fotografar" (sem o uso da máquina fotográfica) instantes de poesia cotidiana completamente ignorados, desconhecidos pelos transeuntes de turno, habitados e entorpecidos com as cenas de um cotidiano tão comum e para eles sempre igual.

Como não notar, pelo amor de Deus, o pai que leva as crianças pequenas à escola numa caixa de frutas, colocada "artisticamente" sobre uma simples bicicleta? Como não notar o passeio dominical de uma inteira família, pais e filhos, sobre as duas rodas daquela simples e surrada bicicleta? Como não notar os repentistas nordestinos realizando o milagre da criatividade humana dentro dos coletivos de Recife, diante de olhos já tão saturados? Como não notar a luta digna e nobre daqueles trabalhadores autônomos, que tentam ganhar o pão de cada dia vendendo bugigangas dentro dos ônibus urbanos?

Como não notar as roupas do domingo que os pobres ainda vestem com aquele orgulho e extrema pureza? Como não ouvir as respostas emocionadas e emocionantes dos mendigos depois de receber uma esmola? Como não notar a beleza profunda dos parques públicos recheados pela pobreza dos domingos? Como não notar os piqueniques dos pobres, vistos como cafonas e farofeiros pelos ricos? Como não se emocionar com a coragem e a ousadia dos pobres de desafiar a vida e suas dificuldades, fazendo os filhos que os ricos quase não querem mais fazer? Como ficar insensível e cego à passagem pelas ruas de famílias catadoras de lixo e suas carroças decoradas para, além do lixo, transportarem também os próprios filhos? Como não enxergar aleijados dando lições de dignidade enquanto lavam carros usando uma mão só,' ou sobem nos ônibus arrastando-se através de um corpo sem pernas? Como não perceber, meu Deus, cadeiras de rodas adaptadas ao comércio ambulante nos semáforos das cidades, ensinando resistência e coragem aos privilegiados amorfos e refrescados pelos condicionadores dos carros? Como não ver o sorriso em cada vida amputada que resiste? Como não se emocionar ou revoltar diante de tanta injustiça? Como não reagir diante de pés descalços sujos e rachados que ainda conseguem sorrir? Como não devolver nada aos pobres pelas suas descaradas e viscerais lições de vida gratuitas e ao vivo em cada canto deste imenso país? Como achar "comum" ou "normal" a enorme dignidade da pobreza? Como é vergonhosa a perpetuação do "madamismo brasileiro", que se alimenta da exploração para viver no cabeleireiro, no spa, nos shoppings, manicures e pedicures!

Ah, como seria interessante se houvesse um intercâmbio maior entre os "primeiros" e "terceiros" mundos deste planeta. Como seriam proveitosos alguns estágios sem data de retorno, para mentes obtusas, tão largamente disseminadas, que crêem na superioridade de algumas sociedades sobre outras. Como seria, ou como é fundamenta,l viver um exílio forçado para se criar profundamente uma consciência de cidadania e uma lucidez imprescindível para se olhar o próprio país, a própria terra. Quantos fantasmas desmascarados, quanta ilusão desfeita, quanto amor descoberto, quanto orgulho ensinado, quantas mentes abertas, quanto cidadão despertado e quanto resultado.
Estou à procura de poesia na Itália, onde ainda "vivo". Acho que a distribuição mais justa da riqueza varreu o que a pobreza tinha de melhor ou de mais humano. Varreu os sorrisos, varreu as emoções, varreu as roupas do domingo, varreu os piqueniques dos parques nos feriados, varreu os sonhos e os ideais, varreu o amor. Restaram os celulares, os metrôs cheios de anônimos, o glamour do falso que tanto fascina, a moda que tanto determina, os carros que são mais numerosos que os seres humanos, as ambições e tanta, mas tanta solidão...

No Brasil, apesar de já' tão largamente difusa, essa riqueza, graças a Deus, ainda não varreu os pobres da face deste país. Porque graças a eles ainda resiste o sorriso, as cadeiras do lado de fora das casas nas periferias, as roupas especiais dos domingos, um jeito mais leve de ser, um coração mais aberto e transparente, um "Deus te abençoe" depois de uma esmola dada, uma fatia de bolo com café de tarde na casa do vizinho, um favor que ainda se pode pedir, os repentistas artistas, uma alegria que consegue resistir, uma teimosia em viver que é lição de vida, uma natalidade que desafia uma mortalidade - não só' demográfica, mas es-pi-ri-tu-al. Coisa que aqui acabou, na Europa dos sonhos de tantos ingênuos, inocentes ou desinformados. Não sabem eles o que essa mesma Europa faz de nossos sonhos: esmaga-os. E esmagando os nossos sonhos, esmaga-nos. O que nos resta? A saudade e a dor. O luto. E a raiva. Uma raiva imensa por não termos sido capazes de enxergar em tempo o nosso país, a nossa terra e sua sacralidade; pois o lugar onde nascemos, crescemos, aprendemos a ler, a falar, a andar, a amar e a viver, bem ou mal que seja, é sagrado. E todos temos o dever de respeita-lo.

É por tudo isso que vale o exílio, apesar de tudo, apesar da dor, apesar da saudade. Exílio é escola de cidadania, mas sobretudo é escola de amor e de descoberta da própria sagrada origem. É através dessa dor que nascem novos homens e novas mulheres, novos cidadãos brasileiros. Ao menos se espera que seja assim, mesmo que sejam uma minoria. O importante é que sejam verdadeiros cidadãos, que tenham feito do exílio escola de vida e não de morte. Morte de si mesmos no labirinto da identidade oscilante, “doença" tão comum aqui fora.

Paradoxal que seja, ridículo que possa parecer, esnobe ou banal, quanto faz falta essa pobreza por aqui. Quanta falta faz, e ai quase ninguém percebe”,

Ana Claudia Pinheiro Teixeira, Itália - amazonas@tiscali.it

CIDADÃO JORNALISTA é um espaço destinado aos leitores e ouvintes que ao relatarem fatos e experiências de sua cidade, comunidade e cotidiano, tornam-se repórteres por um momento.

 
 
Anteriores:
09 /06/2006 Os (des)caminhos do Brasil
02/06/2006
Exportação do álcool
26/05/2006
A riqueza da pobreza!
19/05/2006
Marcola para presidente!
12/05/2006
As casas legislativas
05/05/2006
América
28/04/2006
Vamos Salvar o Brasil de 2026!
21/04/2006 Saudosismo
14/04/2006
A escola e a Greve dos Professores
07/04/2006 O Bananal é imenso