REFLEXÃO


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folha de s.paulo
02/06/2008

Uma estrela na linha de passe

Nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu tão alto quanto Sandra Corveloni, eleita melhor atriz em Cannes


O desfecho previsível da vida de Sandra Corveloni seria a derrota profissional -migrante, filha de pais quase sem escolaridade, moradora da periferia de São Paulo e estudante de escola pública. Mas nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu tão alto em reconhecimento internacional. Como ela ultrapassou tantas barreiras para ser eleita, na semana passada, a melhor atriz no Festival de Cannes?

Apenas o seu talento não explicaria esse desfecho. Nem a habilidade de seus diretores, Walter Salles e Daniela Thomas, no filme "Linha de Passe", em que Sandra é uma mãe enfrentando as agruras da periferia, onde a falta de perspectiva transforma o futebol num dos poucos sonhos disponíveis aos jovens. Para ir tão longe, Sandra precisou colocar-se, na própria vida, na linha de passe desde menina, ela precisou se meter num roteiro de aprendizados.

O caso dela me levou a tentar comprovar o que tenho observado em personagens periféricos que se destacam profissionalmente: além do talento e da força de vontade acima da média, existem sempre fortes referências familiares associadas ao prazer ou à importância do aprender.

Pedi-lhe que contasse sobre as figuras marcantes de sua vida. Sobressaiu a imagem do avô, José Crepaldi, agricultor, pobre, que pouco freqüentou a escola, mas vivia agarrado a um grosso livro de veterinária. "O livro e meu avô eram quase inseparáveis. Era a sua bíblia." Lia e observava, curioso, como os veterinários profissionais tratavam os animais. Gravava o nome dos remédios e dos tratamentos.

Aquele agricultor, mesmo sem escolaridade, virou um veterinário autodidata e começou a ganhar alguns trocados porque era chamado para tratar de animais. A menina carregou para sempre a imagem do avô, em deleite, agarrado ao livro esgarçado. O velho morreu pobre -mas realizado.

Clarice, a mãe de Sandra, nunca foi à escola, mas também trouxe de casa - ela já observava o pai encantado com a veterinária- a importância do conhecimento. Do seu jeito, ela percorreu a mesma trajetória do prazer em aprender: inventava receitas, criava modelos de roupas ou construía móveis. "Minha mãe sempre tinha uma história para contar de alguma coisa que ela tinha feito." Nem que fosse a adaptação de uma receita de bolo que ouvira no rádio ou na televisão.

Exigia que a filha estudasse e que as lições, que lhe eram incompreensíveis, estivessem bem-feitas. Sandra não precisava receber cobranças. Lembra-se de uma professora da primeira série, chamada Dona Gema, que dava ares de festa para a escola. Ensinava cantigas de roda, contava histórias tiradas de livros coloridos, convertia papel e cola em peças de arte. Durante toda a sua trajetória em escola pública, sempre participou do que lhe ofereciam: grêmio, dança, coral, gincana, teatro, jornal.

Todo esse entusiasmo cultural dava-lhe satisfação, mas dificilmente seria fonte de renda. Ingressou num curso técnico gratuito do Senai e, depois, entrou numa faculdade de engenharia, algo que nem remotamente seria acessível a qualquer pessoa de sua família. Não era o suficiente. Podia ter parado aí, com salário, carteira assinada, e já estaria muito bem.

Sua paixão estava na carreira de atriz, descoberta desde que participou de oficinas gratuitas no Sesc. A ex-futura engenheira química preferiu o palco e partiu para estudar teatro no Tuca. Fez de tudo para sobreviver. Até animação de festinha infantil. Possivelmente ser a estrela reconhecida em Cannes era, até a semana, passada, uma possibilidade tão remota quanto seu avô, autodidata, ter sido tratado como doutor.

Além do reconhecimento artístico, o prêmio serve como condecoração ao prazer de se reinventar de uma menina que ganhou holofotes em Cannes, mas cujo futuro começou a ser escrito com palavras científicas de um obscuro livro de veterinária.

PS- Para participar do filme "Linha de Passe", Sandra teve de voltar a morar na periferia. Viu e sentiu a desesperança dos jovens, fora da linha de passe, morando em ambientes esgarçados - estão mais próximos da linha de tiro. Isso ajuda a explicar o inferno das escolas, onde professores são vítimas da violência cotidiana de tentar ensinar indivíduos sem perspectiva, muitos dos quais nunca viram um adulto perseguindo um projeto e apostando no conhecimento. Como estamos metidos numa espécie de guerra civil, reflexo da marginalidade juvenil, o caso de Sandra é um roteiro que mostra que o combate à violência começa com a possibilidade de que cada indivíduo se sinta capaz de descobrir um talento, o que começa na família e prossegue na escola.



Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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