REFLEXÃO


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folha de s. paulo
05/12/2009

Entre o Bronx e a cracolândia

O senso de coletividade foi um dos ingredientes que fizeram a falida Nova York retornar a sua exuberância

Morador de Higienópolis há 40 anos, Norman Gall foi criado em South Bronx, em Nova York. O sossegado bairro de imigrantes europeus se transformou, na década de 1970, no símbolo da degradação urbana dos Estados Unidos -com guerras de gangues e incêndios criminosos, era o cenário de muitos dos filmes sobre violência nova-iorquina. Mas, hoje, é um daqueles laboratórios de soluções urbanas, admirados mundialmente. Norman voltou recentemente para a escola pública em que estudou e se admirou com as inovações. Não apenas escreveu um livro sobre o que viu, mas estabeleceu uma ponte para que a experiência pudesse, neste ano, ser testada em colégios estaduais na zona leste de São Paulo e daí, quem sabe, ser replicada.

Como estou neste momento em Nova York, escolhi essa combinação da zona leste com South Bronx para dizer o seguinte: Gilberto Kassab encontra São Paulo, em seu segundo mandato, numa situação inusitada. Provavelmente, ninguém assumiu a prefeitura paulistana numa situação tão favorável, apesar da crise econômica e dos cortes de verbas.

Indivíduos como Norman Gall revelam uma cidade com um crescente senso de coletividade -no qual não se esperam soluções apenas do governo- e foi esse um dos ingredientes que fez a falida Nova York retornar para a sua exuberância. Em São Paulo, há dezenas de instituições e empresários que vêm assumindo projetos sociais e escolas públicas. Um dos mais famosos publicitários brasileiros, Nizan Guanaes me disse que vai usar seus recursos e contatos para criar, na periferia, uma escola de referência nacional. É o que pretende a Faap ao adotar uma escola na zona oeste. Batem recordes as captações de recursos para programas de proteção à infância e à adolescência. Boa parte da elite paulistana se aglutinou no movimento Nossa São Paulo, criando metas para toda a cidade.

O fato de a violência na cidade cair ininterruptamente desde 1999 e praticamente tirar do assassinato o rótulo de epidemia se explica, em parte, pela ação da sociedade, onde nasceu a campanha pelo desarmamento. Movimentos pela paz se disseminaram em regiões como Jd. Ângela, Paraisópolis e Heliópolis. São Paulo tem a vantagem de viver uma desconhecida harmonia entre um prefeito e um governador, cujos principais investimentos nos próximos anos serão na região metropolitana, entre os quais metrô, Rodoanel e escolas técnicas. Essa será uma das vitrines de José Serra.

Essa parceria favorece acertos nas mais diferentes áreas, como cultura e educação, que se concentram em espaços municipais. Embora em menor escala, a cidade vem conseguindo que os três poderes (federal, estadual e municipal) trabalhem juntos, como em Heliópolis, onde se desenvolveu o conceito de bairro educador, previsto para ser disseminado pela prefeitura.

Além do aumento do sentimento de coletividade e da parceria com o governo estadual, São Paulo terá políticas razoavelmente ininterruptas por dois mandatos; afinal, Kassab ficará (isso se cumprir sua promessa) por quase oito anos no cargo.
Ele está com prestígio em alta, não terá um ano para se adaptar à maquina da prefeitura -e não perderá um ano no final de seu mandato, metido numa eleição. É bastante tempo para que ele revitalize a região da Luz, conhecida como cracolândia, a nossa versão do South Bronx, implante as escolas em tempo integral, espalhe centros culturais e saúde pela periferia, e transforme favelas em bairros.

Quando substituiu Serra, Kassab foi beneficiado pela baixa expectativa, não se esperava muito dele. Não é o caso agora. Com tantas condições favoráveis, ele é obrigado a ter um desempenho ainda melhor do que em seu primeiro mandato -diga-se que não é um bom começo o debate em torno do aumento das secretarias para acomodar aliados, num ano de crise em que ocorrerão cortes no Orçamento.

PS -Um dos fatos que mais marcaram meu aprendizado sobre engenharia comunitária foi ter sido apresentado ao South Bronx por ex-chefes de gangues, que se converteram em reformadores de casas abandonadas. O combate à barbárie rumou das ruas para dentro das escolas, gerando resultados extraordinários, devido a uma série de ousadias.
Aqui, ouvi a frase que sempre quis ouvir de um governante brasileiro. O prefeito Michael Bloomberg pediu aos eleitores que o julgassem por um critério: "Quero ser avaliado pelo desempenho dos meus alunos". Cada vez que volto aqui, vejo que ele está vencendo, a tal ponto que algumas das suas ações se espalham pelo mundo, como na zona leste. Mas também percebo como a resistência paulistana é um dos fatos sociais mais interessantes do Brasil.

Coluna originalmente publicada na Folha Online, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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