REFLEXÃO


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urbanidade
07/05/2008

Sonhos benignos

Algo que o incomodava naquela paisagem que se revitalizava era o gigantesco esqueleto abandonado


Como estudava no colégio São Luís, na avenida Paulista, e morava em Higienópolis, Giovanni Guido Cerri, quase todos os dias, via seu projeto de vida estampado na fachada de um conjunto de prédios. Entre a casa e a escola, estava a Faculdade de Medicina da USP. "Eu olhava para aquele conjunto arquitetônico com reverência, imaginando que, se me esforçasse, faria parte daquela paisagem."

Ontem, ele começou a reescrever seus projetos -e, certamente, ainda com mais emoção do que a do o calouro de cabeça rapada.

Filho de imigrantes italianos, Giovanni, nascido em Milão, passou pelo mais concorrido dos vestibulares e tornou-se professor. Chegou a diretor da faculdade, quando ajudou a melhorar o cenário que tanto o impressionava em seus tempos de adolescência. Foi um dos responsáveis pela reforma das instalações da faculdade, que, graças à recuperação das fachadas, expôs um charme arquitetônico quase desconhecido de quem passa pela rua -um charme hoje mais visível à noite, com a nova iluminação.

Algo que o incomodava naquela paisagem que se revitalizava era o gigantesco esqueleto abandonado por muitos anos, parado por causa da indefinição de diferentes governos sobre o que fazer ali. "Era como se fosse uma mancha suja." Sintoma da doença da incompetência governamental, o esqueleto dificilmente poderia ser mais visível. Localizava-se no espigão da Paulista.

Até então, as conquistas de Cerri poderiam parecer ousadas, mas razoavelmente previsíveis. Veio de uma família de classe média alta e estudou em boas escolas, o que lhe dava plenas condições de entrar na medicina da USP, de ser professor e até diretor. Mas o que surgiu de sua relação com aquele esqueleto saiu do campo da previsibilidade.

Para tentar acabar a obra e definir o hospital -inicialmente voltado para a saúde da mulher, depois para transplantes e, mais tarde, para oncologia, além disso tudo-, o governador José Serra perguntou a Cerri o que ele achava de focar apenas em tratamento de câncer. O médico propôs então que o centro fosse dedicado não apenas ao tratamento mas também ao ensino e à pesquisa - a idéia recebeu apoio no meio acadêmico, o que desentravou os impasses.

O esqueleto era apenas memória ontem, quando foi inaugurado o Instituto do Câncer Octavio Frias de Oliveira, onde, além do tratamento, se farão pesquisas de ponta, inclusive com o desenvolvimento de novos remédios.

Ontem, Cerri via de outro ângulo, agora por dentro, o prédio que tanto o incomodava arquitetonicamente. Foi apresentado como o primeiro diretor-geral do Instituto do Câncer, de cuja paisagem agora ele faz parte.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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