REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

folha de s.paulo
08/09/2008

O pré-sal que está em cima do solo

A redefinição da velhice condiciona, em parte, o destino das cidades; o "petróleo" está
no solo

A redefinição do conceito de velhice é traduzida nos números de trânsito: nos últimos quatros anos, aumentou em quase 70% o número de motoristas com mais de 60 anos no Estado de São Paulo, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). A mudança ainda mais veloz ocorreu na faixa acima de 80 anos, na qual se registrou um crescimento de 200%.

Mais uma tradução, dessa vez com indicadores do emprego formal: são os profissionais entre 50 e 64 anos que, proporcionalmente, mais se expandem no mercado de trabalho. A taxa é nada menos que 80% maior do que a média nacional. A média é superada até mesmo por quem tem mais de 65 anos. Em determinados setores, existe uma caça aos aposentados. É um movimento que se nota desde 2004 e não pára de acelerar.

A redefinição da velhice condiciona, em parte, o destino das cidades, já que está ocorrendo uma mudança da paisagem urbana -como muitos dos temas que exigem visão de longo prazo, o impacto de alterações demográficas quase não aparece no debate eleitoral.

Nessa mudança de paisagem, estamos diante de uma riqueza ainda maior do que o tão badalado petróleo na camada pré-sal. A diferença é que, nesse caso, não precisa perfurar nada. O "petróleo" está no solo.

Um dos riscos óbvios: não estamos nem remotamente preparados para enfrentar o envelhecimento da população, fato que exige tratamentos muito mais caros e demorados. Não estamos nem preparados para cuidar de questões simples. Por isso, essa é a grande questão do debate eleitoral paulistano -muito, mais muito, mais importante do que, por exemplo, o trânsito.

Basta lembrar que crianças não conseguem aprender porque não ouvem nem enxergam direito. São problemas simples e baratos de serem tratados.

Há uma boa perspectiva também óbvia. Com menos crianças e jovens, é menos difícil enfrentar os problemas da infância e da adolescência.

Uma das questões mais relevantes -e aí nada óbvia- é apontada pelo demógrafo José Marcos Pinto da Cunha, da Unicamp. O país está com uma enorme chance de melhorar seus indicadores sociais e as cidades serão grandes beneficiárias. Haveria, segundo ele, muitíssimo mais benefícios do que prejuízos com o envelhecimento da população.

O pesquisador mostra que, por muitas décadas, a maioria da população será formada por pessoas na fase produtiva, gerando empregos e salários -uma situação nova, criada pela redução do número de crianças e adolescentes, combinada com o fato de que ainda é pequena a proporção de idosos.

Ainda estamos longe, segundo ele, do perfil europeu, em que cada vez menos trabalhadores devem manter os aposentados. Mas, afirma Marcos, chegaremos lá e aí já não teremos esse benefício.

Enquanto vivermos essa transição, teremos a chance de produzir mais riquezas para sustentar velhos e crianças. Se estiverem empregadas, as pessoas terão feito uma poupança para sua aposentadoria, mantendo-se consumidoras e, assim, estimulando empregos.

Além disso, as pessoas tendem a se manter no trabalho por mais tempo. Uma reportagem recente da revista "BusinessWeek" mostrou o número crescente de executivos com mais de 80 anos, reflexo da valorização de atributos dos mais velhos -a serenidade, a experiência e o senso de perspectiva, por exemplo. Nada disso seria possível sem os avanços da medicina.

As cidades que souberem aproveitar esse potencial sairão ganhando em inovação. Aproveitar significa oferecer sofisticados serviços médicos, facilidade de locomoção e programas de aprendizagem permanente. Tirar proveito, de fato, daquele pré-sal depende não só do crescimento econômico, mas da qualificação dos trabalhadores. Isso se traduz na necessidade de melhoria do ensino público e, mais ainda, no encaminhamento ao mercado de trabalho. Não é o que ocorre. O ensino é ruim e a oferta de cursos profissionalizantes, escassa. Sem contar os desperdícios que cursos ruins, desconectados da realidade isso para não falar do desvio de verbas.

Sem isso, o que era apenas uma possibilidade se transformou em mais um desperdício, desses que estamos tão acostumados no Brasil -é como se jogássemos fora, sem explorar, as reservas do pré-sal.


PS: Uma das notícias interessantes da eleição paulistana é que todos os principais candidatos estão colocando como missão aumentar a oferta de ensino técnico o que, até pouco tempo, era visto como uma tarefa dos governos estadual e federal. O prefeito consegue melhor do que ninguém conhecer as vocações de cada bairro e estimular, a partir disso, a formação profissional. Vejam o absurdo. Um dos obstáculos para a expansão do ensino técnico público, na cidade de São Paulo, é a falta de áreas para construir. Uma parceria com o poder local resolveria rapidamente esse problema.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
03/09/2008 O primeiro aplauso
02/09/2008 Empregada também é trabalhadora?
01
/09/2008 Vilas da fantasia
27
/08/2008 O médico virtual
26/08/2008 Kassab já ganhou?
25
/08/2008 O DNA de São Paulo
20
/08/2008 O colecionador de vozes
19
/08/2008 Sabia que pedágio urbano já existe?
18
/08/2008 A poesia do encontro
13/08/2008 Aventuras de um poeta jogador
Mais colunas