REFLEXÃO


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folha de s.paulo
14/07/2008

Um brinde aos que não morreram

Dados do IML mostram queda de 57% no número de mortes violentas ocorridas nos fins de semana na cidade de São Paulo


Um relatório oficial concluído na sexta-feira passada, com base em registros do Instituto Médico Legal, mostrou uma redução de 57% no número de mortes violentas ocorridas nos fins de semana na cidade de São Paulo desde a implantação da chamada "lei seca" -e aí se computa a queda não só dos acidentes de trânsito mas também dos assassinatos.

Só está acontecendo o que muita gente fala há muito tempo sobre a relação entre álcool e violência. Foram necessários anos e anos de denúncias e estatísticas até que as autoridades se convencessem da gravidade do problema e passassem a agir com mais dureza.

Esse relatório do IML é um ingrediente de uma história que ainda não foi contada -a história de centenas de milhares de pessoas, que, nos últimos 20 anos, enfrentaram as mais diferentes modalidades de violência ligadas à exclusão. Essa é uma batalha que está apenas começando, mas já traz algumas vitórias.

Um exemplo de violência é a gravidez indesejada. A epidemia da gravidez precoce teve uma redução de 35% nos últimos dez anos em São Paulo -essa informação, divulgada na semana passada, é expressiva especialmente em comparação com a tendência crescente nacional, segundo a qual, em 2007, 612 mil adolescentes se tornaram mães.

Os avanços ocorreram por causa da derrubada de tabus. Diminuiu-se um pouco a distância entre os jovens e os métodos contraceptivos, com máquinas de distribuição de camisinhas nas escolas e a distribuição de pílulas do dia seguinte nos centros de saúde. Não faz muito tempo, muita gente tinha até vergonha de pedir um preservativo na farmácia, como se fosse um produto pornográfico.

Estudiosos atribuem parte da acentuada queda do número de assassinatos na cidade de São Paulo a questões demográficas combinadas com o avanço na escolaridade, favorecidas, em parte, pela redução do número de mães jovens na periferia.

A mais estúpida das violências é a morte de crianças, não raro vítimas de doenças fáceis de tratar. A desnutrição infantil despencou, no Nordeste, 70% nos últimos dez anos, segundo divulgou o Ministério da Saúde neste mês. Nesse período, a mortalidade infantil caiu 44%.

Não teríamos resultados tão rápidos sem as campanhas contra a fome, o estímulo ao aleitamento materno, a disseminação do sal de reidratação oral e a propagação dos agentes comunitários de saúde e do médico de família, além do esforço de saneamento básico. Foi necessário que se expusessem as experiências pioneiras do Ceará, na década de 1980, de redução da mortalidade infantil para que aquelas práticas tivessem impulso nacional ou para que prosperassem os programas da Pastoral da Criança, tocados pela pediatra Zilda Arns.

Esse tipo de ofensiva está associado a um consenso sobre ações que surgiram em oposição ao assistencialismo, tão comum no país. Eram programas de renda mínima exigindo contrapartidas, depois unificados no Bolsa-Família -e aqui foram decisivas as experiências germinadas em Brasília e em Campinas, depois ampliadas pelo governo federal.

Produziram-se dados mais precisos sobre a realidade brasileira e vimos o tamanho do desperdício de dinheiro público, com a falta de foco e a fragmentação dos recursos. Justamente aí cresceu a tendência de estimular o cruzamento de ações num mesmo território -um processo que ainda está muito longe de alterar a gestão de verbas públicas, embora já existam modelos locais bem-sucedidos.

Tome-se uma cidade como Apucarana, no Paraná, onde não existe Secretaria da Educação. Uma Secretaria de Desenvolvimento Humano articula o maior número possível de programas municipais em torno das escolas. As notas dos alunos das escolas municipais, segundo mostra o ranking do Ministério da Educação, tiveram uma rápida subida -relatei a experiência neste link.

O crescimento econômico por si só não teria feito cair a miséria e melhorar a distribuição de renda. Foi e é fundamental a visão de que se deveriam focar os recursos diretamente nos mais pobres. O processo, porém, só será sustentável se as pessoas ganharem autonomia, o que ainda está longe de acontecer.

É por isso que, neste momento, se está consolidando o mais importante dos consensos: a distribuição de renda e a queda do desemprego (e até a do crescimento econômico) estão ligadas à evolução do capital humano. O avanço conceitual está no estabelecimento de metas educacionais de longo prazo e na possibilidade de o cidadão saber o que ocorre dentro de cada escola.

Tão importante quanto o consenso pela volta da democracia é, neste momento, o consenso sobre como enfrentar a exclusão -nossa pior opressão.


PS- Neste mês, comemora-se a maioridade do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Criado exatamente quando se divulgaram dados nacionais sobre o assassinato sistemático de crianças, além da prostituição infantil, quando se apresentou ao país a guerra urbana que se instalava nas metrópoles -o mais sombrio efeito da chamada década perdida-, sua grande importância nesses 18 anos foi ter mudado mentalidades para tentar colocar a criança e o adolescente no foco das políticas públicas.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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