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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
16/01/2005
Criança não é brincadeira

Crianças com menos de oito anos correm o risco de vir a apresentar tumores no ouvido se usarem telefones celulares por muitas horas. Divulgada na semana passada pelo Conselho Nacional de Proteção Radiológica do Reino Unido, depois de uma série de pesquisas, a advertência espalhou-se pelo mundo.

Por ocasião do anúncio, exigiu-se a adoção de medidas imediatas, como a obrigação de que todos os celulares estampem o aviso sobre o perigo das radiações. Temendo processos, um fabricante suspendeu a comercialização de seu modelo de celular infantil.

Tumores no ouvido provocados pelo uso de um telefone são mais um aspecto dos novos tipos de vulnerabilidade a que está exposto o mundo infantil. Foi-se o tempo, nas grandes cidades brasileiras, em que os medos infantis eram representados apenas por figuras imaginárias e em que as ruas eram o melhor espaço para brincadeiras.

Não é ingenuamente que os pais presenteiam suas crianças com um telefone celular. Por causa da violência, particularmente dos seqüestros, os pais querem ter seus filhos conectados permanentemente; acabam, assim, transmitindo a eles a sua própria insegurança.

Para aperfeiçoar essa conexão, empresas oferecem a implantação de chips nas crianças, que, dessa maneira, podem ser facilmente detectadas por satélite. Pode ser exagero, mas a insegurança tem base sólida na realidade: na cidade de São Paulo, por exemplo, ocorreu no ano passado uma onda de seqüestros de crianças.

A violência é uma das razões para explicar outra vulnerabilidade infantil contemporânea: a "epidemia" de obesidade. Trata-se de um fenômeno mundial que vem alastrando-se pelo Brasil. Além de as ruas estarem dominadas pelos automóveis e as calçadas terem sido destruídas, meninos e meninas sentem-se receosos de sair de casa. Passam boa parte do tempo na frente da televisão ou do computador, empanturrando-se de alimentos de baixo valor nutritivo.

A própria noção de brincadeira está mudando. Pais zelosos imaginam que fazer os filhos estudarem cada vez mais cedo vai ajudá-los num mundo competitivo. A agenda de estudantes de classe média assemelha-se à de executivos, tamanho o número de compromissos.

Tira-se, assim, espaço do encantamento lúdico, fundamental para o desenvolvimento infantil.

Vivemos um momento em que os pais estão inseguros em relação não apenas à violência mas também à maneira de educar os filhos.

Nos dias de hoje, pai e mãe trabalham e ficam fora de casa, o que aumenta a taxa de estresse do casal. Para compensar a própria ausência, dão presentes aos filhos e impõem menos limites: estimula-se, assim, nas crianças a dificuldade de lidar com a frustração e a baixa tolerância às perdas. Dessa maneira, surgem os pequenos tiranos, que vivem entre a fartura material e a carência emocional.

Mesmo os professores estão inseguros sobre a melhor forma de educar. Sabem que o sistema tradicional de ensino não responde à rapidez das inovações da sociedade e têm dúvidas (refiro-me aos educadores sérios) sobre o modo de ensinar estudantes em tempos de tanta velocidade, em que o conhecimento se torna tão rapidamente obsoleto. O desemprego é mais um dos fantasmas que passaram a figurar no imaginário infantil.

Toda essa vulnerabilidade tem um preço. Educadores, médicos e psiquiatras vêm alertando sobre os sinais de crescimento do número de casos de distúrbio mental entre crianças, vítimas de ansiedade, de hiperatividade, de distúrbio de atenção e de depressão. Isso significa aumento do risco da disseminação das drogas.

Muitas vezes, nem os pais nem as escolas estão preparados para perceber ou para enfrentar esses sinais e acabam apenas dificultando o que já é difícil.

Futuro melhor significa a chance de todos, adultos e crianças, reaprenderem a brincar.

PS - Devo estar ficando velho. Para mim, a imagem da criança não é a de alguém preso a um computador. É, antes, a de alguém que tinha mais coisas a fazer do que ficar esquentando o ouvido num telefone. Infância, para mim, são meninos e meninas subindo em árvore, jogando bola na rua, molhando-se na chuva, tomando banho de esguicho, vendo as águas do rio, descobrindo o movimento de uma minhoca repartida. A imagem a que me refiro não é a de obesos, mas a de crianças sujas, com roupas rasgadas, com joelhos ou cotovelos machucados. Aprendi que os homens que nunca envelhecem são aqueles que não param de brincar com a vida. Talvez seja saudosismo, mas vejo em muitas crianças um jeito queixoso de velho, que deve vir de não saberem mais brincar.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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