REFLEXÃO


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folha de s. paulo
18/05/2009

O protesto da privada inteligente

Formados em ciência da computação em São Paulo, três amigos elaboraram um protesto bem-humorado contra o acúmulo de lixo da internet, cansados das bobagens e obviedades dos blogs -um besteirol agravado ainda mais com a disseminação do Twitter. A brincadeira acabou na invenção de uma privada inteligente.

Treinados em desenvolvimento de programas para a internet, Arthur Lima, Daniel Dias e Eduardo Alves moram juntos e, nas horas vagas, tocam um laboratório, em que pedem colaboração a colegas ou a qualquer um que deseje participar de um experimento -deram o nome a isso de "colaboratório". Nesse "colaboratório", desenvolveu-se um sistema de sensores conectados à privada capaz de acompanhar o movimento da água.

Antes mesmo que o indivíduo saia do banheiro, o ato fisiológico estará registrado, em palavras, numa página da internet, acessível, portanto, a qualquer um em qualquer parte do mundo. "Como somos favoráveis ao software livre, deixamos o código aberto", brinca Daniel Dias, que resolveu batizar a invenção de "Shit Happens".

A brincadeira é um jeito de tentar entender, seriamente, a decisão anunciada na semana passada de tornar obrigatório um novo exame para aprovação do ensino médio. É uma das mais importantes decisões lançadas nos últimos tempos para tentar reduzir o lixo informativo que atormenta desnecessariamente os jovens -e aposto que terá impacto no jornalismo.

A indicação do Enem -até agora só um mecanismo para entrada nas faculdades -como prova obrigatória para a conclusão do ensino médio significa mais do que mudar o currículo das escolas. O essencial é a mudança do olhar sobre como transmitir conhecimento aos jovens. Se eu pudesse resumir em poucas palavras os documentos divulgados na semana passada sobre o que será o Enem, diria o seguinte: os estudantes serão (ou deveriam ser) treinados para aprender a selecionar o que é relevante, conectando as informações ao cotidiano.

Explicando melhor: noções de química, física, biologia e história devem ser usadas para entender, por exemplo, o aquecimento global. O que se pretende colocar no ralo são as informações que não fazem sentido porque são apresentadas isoladamente -é algo tão inútil quanto o jovem que, no Twitter, posta algo como "escovei os dentes", "acordei", "jantei" -o tipo de inutilidade que acabou gerando a invenção do "Shit Happens". Mas por que, afinal, a mudança do currículo escolar terá impacto no jornalismo?

À medida que se valorize o cotidiano para concatenar as diversas matérias e o vestibular dê cada vez mais ênfase a esse olhar, a boa educação será avaliada, entre outras coisas, pela habilidade de os professores lidarem com a comunicação. Um fato exposto no noticiário não será usado apenas ocasionalmente num trabalho escolar, como já ocorre. Será uma das principais matérias-primas para as aulas. Quanto melhor um meio de comunicação souber contextualizar um fato, terá mais chance de virar hábito dos leitores, ouvintes e telespectadores.

Existe aqui um encontro com o jornalismo -até porque a imprensa também é vítima e, simultaneamente, vilã no efeito "Shit Happens". Há uma crescente torrente de informações que dificulta a capacidade de seleção do que é relevante. A sobrevivência dos jornais estará muito mais vinculada à sua capacidade de dizer o que importa, com precisão e contexto, do que a dar furos.

A conclusão disso pode parecer hoje um pouco estranha, mas com o tempo será rotina. Os meios de comunicação vão absorver um pouco do jeito de ser da escola, mais preocupados com o didatismo e processos cognitivos de seus leitores, ouvintes ou telespectadores.

Será ainda mais disseminada, na internet, a possibilidade de tirar dúvidas sobre as matérias ou discutir diretamente com os repórteres e colunistas -na prática é um ensino a distância. Ao mesmo tempo, as escolas terão ingredientes de Redação de jornal, tamanha a necessidade de os professores e alunos lidarem com as notícias como eixo estruturante do currículo e usarem recursos de comunicação para elaborar trabalhos ou pesquisas.


Nada disso será nem rápido nem fácil. Se os docentes já não sabem lidar direito (para dizer o mínimo) com o atual currículo, imagine um plano de aula montado em eixos transversais, inter e multidisciplinares. As escolas de elite já vêm realizando, há muito tempo, esse tipo de inovação, com ótimos resultados isolados -faltava a mudança do vestibular para que tivessem mais estímulo. A imprensa terá de aprender a ser mais didática e colaborativa com seus leitores, além de investir em menos e mais importantes notícias.

No final, tanto o jornalismo como a escola estarão melhores -e muita notícia e livro escolar irão diretamente para a privada.

PS: Dou outros detalhes neste link sobre o funcionamento do "Shit Happens".

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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