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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
28/11/2005
As aulas de mídia da garota de programa

Foi o pior ano da vida de Raquel Pacheco, uma adolescente de classe média. Em 2003, estava brigada com os pais -nem sequer se falavam-, sua melhor amiga havia morrido de overdose, não tinha namorado e vendia o corpo para se sustentar. A maconha, a cocaína e os antidepressivos aliviavam-lhe a dor. Mas, logo em seguida, o desconforto voltava mais forte. Precisava desabafar, mas estava sozinha. Inventou um nome de guerra (Bruna Surfistinha) e começou a escrever um blog no dia primeiro de janeiro de 2004. "Fazer o diário virtual foi o jeito que encontrei para enfrentar a solidão."

Contava em detalhes as aventuras de uma garota de programa de classe média. "Muita gente achava que era mentira." Entre os leitores, surgiram editores com faro profissional que fizeram da intimidade de Raquel o best-seller "O Doce Veneno do Escorpião". Em determinados dias, o blog obteve 100 mil visitas.

Para medir o que essa audiência significa, basta saber que, na semana passada, o Ibope divulgou o ranking dos blogs de colunistas políticos. Nos primeiros lugares, pela ordem, estão Fernando Rodrigues, Josias de Souza e Ricardo Noblat. Todos veteranos, premiados, conhecem profundamente os bastidores do poder, destacam-se em portais de alta visibilidade.

Favorecem-se do fato de que a crise, gigantesca e sem fim, aumentou o interesse pelos porões de Brasília.

A nossa Surfistinha, de 21 anos, ensino médio incompleto -"era mais fácil, para mim, virar escritora do que ler um livro"-, ficaria muito bem se, por uma hipótese absurda, entrasse naquele ranking de cronistas políticos. Estaria quase empatada em segundo lugar.

Sucesso midiático, Raquel é um dos personagens da geração perdida de jovens, detectada em pesquisa, divulgada na semana passada, sobre os novos consumidores. Dali se extrai uma dica sobre o futuro do jornalismo.

A geração perdida se refere à experiência de comunicação -e não a sexual- que levou ao estrelado internáutico de Bruna Surfistinha. Sem o fenômeno do blog, ela provavelmente ainda estaria no anonimato.

Para traçar um perfil dos novos consumidores, o Núcleo Jovem da editora Abril entrevistou brasileiros de oito a 24 anos, das classes A e B, e detectou os efeitos do excesso de informação. Os jovens se sentem perdidos, bombardeados por todos os lados. A chamada era da informação, acelerada pela internet, em que se disseminam sites, portais, e-mails, "orkuts", blogs, é, para eles, também a era da confusão.

O resultado é uma crescente desconfiança sobre o que lêem, assistem ou ouvem. O que demandam, segundo a pesquisa, não é quantidade, mas qualidade. Ou seja, buscam filtros e não encontram -para selecionar o que merece credibilidade. "Acabou a festa da celebração da democratização da informação", afirmam os técnicos responsáveis pela pesquisa.

O levantamento sugere o fim de um período de deslumbramento em que todos, como Raquel, podem se fazer notados, graças às tecnologias da comunicação. Para reagir à confusão, jornalistas defendem a idéia de que o papel da imprensa deveria ser menos o de transmitir notícias -afinal, estão em qualquer lugar e a qualquer momento- mas o de contextualizá-las. Ou seja, tornar ainda mais rigoroso o processo de seleção sobre o que é relevante. Apenas se aprofundaria o principal papel do jornalismo, que é o de servir de intermediário entre os fatos e o leitor, o ouvinte ou o telespectador.

A novidade é que aumentar o rigor da seleção talvez já não baste diante da avalanche de informação e da demanda de seleção dos fatos. Por isso, está nascendo uma linguagem mesclando comunicação e educação. Assim como o educador não pode descuidar das novas tecnologias de informação -prosperam, por exemplo, os cursos a distância-, o comunicador terá de ir além da clareza das matérias. Com tamanha abundância de dados que embaralham os consumidores de notícias, a imprensa será forçada, cada vez mais, a acrescentar didatismo à clareza, disseminando as sabatinas com personagens das mais diversas atividades e realizando encontros, reais ou virtuais, para explicar o que está acontecendo.

Por mais estranho que pareça, a Redação ganhará um jeito de sala de aula. Educadores e comunicadores ficarão mais próximos, no esforço de converter informação em conhecimento, dando-lhe significado, transformada em algo útil para os indivíduos. Essa é uma das lições do efeito midiático Bruna Surfistinha.

P.S. Uma das conclusões da pesquisa: uma parte dos jovens das classes A e B, bombardeados por tanto apelo de consumo, está mais ligada ao desejo de possuir do que propriamente de usufruir o que adquiriram. Um dos entrevistados disse: "Passei um tempão na loja, comprei milhares de coisas e depois nem sei se usei tudo". Isso é uma espécie de veneno de escorpião.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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