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REFLEXÃO


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urbanidade
31/05/2006
Diálogo no escuro

Dinheiro e sucesso se esfarelaram no hospital, e Bernard passou a buscar um sentido para a sua existência

Vítima de uma parada cardíaca, Bernard Kaplan esteve, no ano passado, morto por 60 segundos. Os médicos conseguiram reanimá-lo no hospital, mas avisaram à família que dificilmente ele sobreviveria com os remédios tradicionais e alertaram para o pior. Quase sem esperança, sugeriram um tratamento experimental, com a condição de que fossem autorizados, formalmente, por algum parente. Na falta de alternativa, Stella, mulher de Bernard, aceitou -e assim iria começar a nascer um projeto de criar, em São Paulo, um museu dentro de um shopping center, batizado de "Diálogo no Escuro."

Quando já estava recuperado, Bernard foi informado, aos poucos, sobre a gravidade de seu ataque cardíaco, associado a várias outras doenças. "É intraduzível essa sensação de já ter morrido." Como acontece nesses momentos de extrema fragilidade, começou a pensar no que faria de relevante no futuro. "Passamos a conviver com a idéia de que a qualquer momento tudo pode acabar. Isso nos leva a pensar em valores essenciais."

Estava com 78 anos de idade e um patrimônio bem além do razoável. Francês nascido em Paris, Bernard tinha 29 anos quando veio morar em São Paulo, como engenheiro químico de uma empresa européia. "Naquela época, a cidade era um charme, ainda mais para quem, como eu, morava num belo apartamento na av. São Luís." Acabou mudando, radicalmente, de ramo e entrou nos negócios, onde fez fama e dinheiro construindo shopping centers, ainda novidades na São Paulo da década de 60. "Apostava na idéia de que, no caos urbano que ia se avolumando, o consumidor iria preferir ficar numa cidade protegida e coberta."

Paradoxos do olhar
Dinheiro e sucesso profissional se esfarelaram naquela cama de hospital -e Bernard começou a procurar um sentido para a sua existência. Conheceu uma experiência, desenvolvida na Alemanha, intitulada "Diálogo no Escuro". É uma exposição com os mais variados estímulos sensoriais, realizada em salões totalmente escuros, nos quais os guias são cegos. O idealizador do projeto, o alemão Andreas Heinecke, diz que se sente naquela exposição "o paradoxo de aprender a ver de novo através do não olhar". Ser cego, para ele, significa exclusão numa sociedade baseada no visual. Mas não significa infelicidade, graças à recompensa com outro tipo de "olhar", a partir de uma dimensão do cotidiano não-visual.

Bernard submeteu-se várias vezes a ser conduzido, nessa exposição, aos cegos. "Percebi coisas que nunca tinha sentido, mas que sempre estiverem à minha volta." Os ruídos e perfumes, o vento, a textura de um copo. Animou-se com o que viu nas bilheterias da exposição: filas de interessados e, ainda por cima, a chance de empregar deficientes visuais.

Voltou para o Brasil decidido a trazer a novidade para São Paulo. "Ninguém sai igual dessa experiência. Aprendemos a enxergar nossas deficiências." Espera inaugurar já no começo de 2007 uma exposição -e, como seria previsível, escolheu fazê-la num shopping. E, assim, estará fazendo o seu imprevisível diálogo particular com o "escuro".


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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