REFLEXÃO


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urbanidade
31/10/2007

Triângulo amoroso em São Paulo

Aquele corpo-a-corpo com a cidade foi levado para a tela, contando o prazer e a dor de morar em São Paulo

Entardecia em São Paulo. Irado, Heitor discute, pelo telefone, com a namorada. Desliga e se desespera. Às pressas, pega o carro para encontrá-la: quer evitar o fim da relação e sente que não tem um segundo a perder. Mas fica preso num gigantesco congestionamento.

Enquanto espera, viaja pelo tempo.

Com suas crianças de rua, mendigos e executivos agitados, a paisagem paulistana desfila pelo vidro de seu carro. Por trás das telas desse filme em que Heitor (Marcos Ricca) é o personagem principal de "A Via Láctea", há uma outra digressão -e uma tumultuada história de amor.

No filme, a briga entre o casal ocorre por causa da suspeita de traição. A outra ponta do triângulo, entretanto, não é uma pessoa, mas a própria cidade, que se transforma num personagem. "São Paulo é, para mim, um útero", compara Lina Chamie, diretora do filme, o que significa uma fonte de inspiração.

Lina nasceu no Bexiga, naquela época epicentro da boêmia paulistana, onde, quando adolescente, se encantou com o teatro. Com os bicos que fez -trabalhava com aparelhagem de som-, comprou uma pequena motocicleta, que a levava ao colégio Equipe, então uma espécie de incubadora de talentos artísticos paulistanos, entre os quais, o cineasta Cao Hamburguer, candidato ao Oscar com "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias".

Para ela, São Paulo e, especialmente, a região que englobava o Bexiga e o Equipe, era um parque de diversões. Preferiu, porém, mudar-se para Nova York. Ficou 13 anos por lá. "A imagem que fazia da cidade era uma imensa nuvem cinza. Mesmo assim, era ali o meu lugar." Fez mestrado em música em Nova York, mas seu prazer estava mesmo no cinema. "Ao voltar para casa, estava voltando para o meu cenário."

Lina não se dá muito bem com a natureza. "Na praia, me queimo rápido, tenho pele fina. No campo, os bichos me picam e fico inchada. Gosto mesmo é do asfalto." Sentir a cidade significa caminhar a pé ou fluir pelo trânsito, montada numa moto, zanzando entre os outros. Seus pais se mudaram do Bexiga e foram morar em Moema -o que a obrigava a ir até o Equipe fazendo um longo trajeto e encarando a avenida Santo Amaro, "a rua mais feia do mundo".

A cidade vai mudando -e para pior. Andar de moto passou a significar risco de morte: ruas ficaram muito congestionadas, calçadas foram embora, crime cresceu. "A cidade ficou um espaço de impossibilidades." Daí prestar-se a ser um personagem para falar de amores, dores e conflitos - é o que ajuda a explicar a paisagem paulistana habitar cada vez mais os filmes.

Aquele corpo-a-corpo com a cidade, feito pela moto ou pelas caminhadas, foi levado para a tela, contando o prazer e a dor de morar em São Paulo. O filme estréia na próxima sexta, Dia de Finados, quando São Paulo não é bem São Paulo: as pessoas viajam e as ruas ficam vazias, apenas com a lembrança daquele trânsito exibido em "A Via Láctea".

Mas é a São Paulo -vazia, sem filas- dos que mais gostam dela, que não a trocam por um feriado na praia ou no campo.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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