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criatividade
12/11/2004

Sociedade organizada constrói cisternas e dribla a seca no semi-árido

"Sou agricultora, professora e líder da Associação Quilombola Rural Sítio Angico, em Bom Conselho, semi-árido pernambucano. Posso garantir que, há vinte anos, a comunidade tem um sonho. O sonho de ter água o ano todo. Somente agora, graças à construção das cisternas, conseguimos realizar esse sonho", afirma Maria Márcia Rodrigues de Almeida.

De fato. Se para quem mora nos grandes centros urbanos a água é algo tão natural que só se nota sua presença quando falta, no semi-árido, ela é sinônimo de sobrevivência. E os moradores não se esquecem da dificuldade que é viver com sua ausência. O coordenador executivo da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) pelo Estado de Pernambuco, Aldo dos Santos, resume: "para o sertanejo, a água é vida. É um elemento quase mais forte do que o alimento".

Márcia conta que, nos últimos dois meses, a vida de sua família mudou bastante. Até então, duas ou três pessoas de sua casa - quase sempre mulheres e crianças - andavam de dez a doze quilômetros por dia, a pé, em busca de água para abastecer os seis membros da família. Hoje, todos têm bem claro o que representa uma cisterna: água de qualidade para beber e cozinhar o ano todo, pertinho de casa.

O semi-árido ocupa 11 Estados brasileiros - os 9 do Nordeste, além de Espírito Santo e Minas Gerais -, totalizando cerca de um milhão de quilômetros quadrados. Nessa região, as chuvas são concentradas nos primeiros meses do ano - sobretudo fevereiro, março e abril. Quando a água chega, as condições de vida melhoram. Mas, quando vem a estiagem, a luta pela água incorpora-se ao cotidiano das pessoas.

Enganando a seca
A quantidade de água que cai do céu nos primeiros meses do ano seria suficiente para suprir as necessidades das famílias durante todo o ano. O problema é que ela é absorvida diretamente pelo solo e acaba sendo desperdiçada. Uma forma bastante simples de evitar esse desperdício é construir cisternas, isto é, recipientes construídos com placas de cimento pré-moldadas, capazes de armazenar a água que cai nos telhados no período chuvoso para utilização para consumo humano durante o restante do ano.

Naidison Quintella Baptista, coordenador executivo da ASA Bahia, conta que a solução foi proposta há mais de 30 anos, por agricultores. Mas só há dois anos, graças à articulação da sociedade civil promovida pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) com o poder público, virou política pública.

A ASA é uma rede que congrega cerca de mil organizações sociais, associações comunitárias, entidades vinculadas à igreja, sindicatos de trabalhadores dos 11 Estados afetados pelo semi-árido. Foi criada em 1999, em função da realização da 3ª Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca -, patrocinada pelas Nações Unidas, em Recife.

Até então, explica Aldo dos Santos, da ASA Pernambuco, as organizações sociais só dialogavam nos momentos críticos. Mas durante a Conferência, essas organizações - que, como explica Naidison, de uma forma ou de outra, já estavam ligadas à luta pela sobrevivência no semi-árido - montaram um fórum paralelo de discussões. Na oportunidade, a sociedade civil entregou a Declaração do Semi-Árido às autoridades.

A Declaração trazia uma série de sugestões para promover o desenvolvimento socioeconômico da região, propondo formas alternativas de se gerir o semi-árido, facilitar o acesso dos agricultores ao crédito, promover pesquisas, oferecer assistência técnica e garantir a segurança hídrica e alimentar, tornando viável a convivência no semi-árido.

Após o evento, a articulação continuou e montou-se uma rede de organizações, que passou a desenhar o "Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais", mais conhecido como "Programa Um Milhão de Cisternas" (P1MC), pois prevê a construção de um milhão de cisternas do semi-árido, em cinco anos.

Aldo explica que o nome oficial do Programa já dá as indicações: sua base é a participação popular, a formação das famílias para que aprendam a conviver com o semi-árido. "A ASA tem um programa concreto, em torno do qual as pessoas se mobilizam. O processo é, portanto, bastante participativo. A proposta é que a sociedade construa uma política pública para o semi-árido do nordeste e depois fique encarregada de fazer seu controle social. O fato de todos se mobilizarem por uma causa concreta promove a integração dessas pessoas e organizações", avalia Aldo.

O coordenador da ASA - Bahia, Naidison, acrescenta que a maior contribuição da ASA é "a articulação da força do semi-árido. Até então, havia uma força, mas que estava dispersa. Com esse trabalho, conseguimos mostrar que o povo do semi-árido não é composto por pedintes, mas por pessoas dignas, que merecem respeito, auto-estima e uma atenção mais específica em termos de política. E que não precisa de ações assistencialistas".

Sociedade organizada
O sucesso do P1MC depende, desde o primeiro momento, da participação popular. Quem decide quais serão as famílias beneficiadas é uma comissão local, formada por representantes da sociedade civil local.

Itamar de Carvalho, um jovem agricultor de 19 anos, que vive em São Bento do Una, cidade próxima a Bom Conselho, conta uma história semelhante à da professora Márcia. Ele diz que em sua comunidade, existem muitas famílias numerosas, que precisavam buscar água com carros-de-boi em alguma fonte ou cacimba a quilômetros de sua residência.

O jovem faz parte da comissão que definiu quais famílias seriam beneficiadas em sua região. E afirma que abriu mão da construção de uma cisterna em sua casa, pois julgou que havia famílias maiores e mais necessitadas. Hoje, no entanto, ele já tem uma cisterna em casa, construída por intermédio de um outro programa.

Escolhidas as famílias que serão beneficiadas, é montado um curso de capacitação para o gerenciamento hídrico. Durante dois dias, elas são conscientizadas sobre o uso racional da água, qual a melhor forma de captar as águas do telhado, como fazer a manutenção da cisterna, segurança hídrica etc. Então, parte-se para a construção dos reservatórios.

Contrapartida
Como as famílias devem se apropriar do equipamento, elas precisam ajudar a construir as cisternas. Lucílio Halter Sobral Mendes, agricultor de Poção, no Agreste Meridional do Pernambuco, está construindo cisternas na comunidade. Ele explica que para obter o benefício, as famílias devem apresentar uma contrapartida de 10% do valor da cisterna (R$ 148,00). Além disso, os membros das famílias devem cavar o buraco da cisterna, colocar a areia, preparar a massa e oferecer as refeições para os pedreiros.

Cada cisterna construída com apoio da ASA armazena 16 mil litros de água - o suficiente para abastecer uma família de cinco pessoas, durante oito meses. A água só pode ser utilizada para beber e cozinhar. As cisternas são construídas em forma de mutirão, conta Lucílio. Então, primeiro todas as famílias ajudam a levantar uma das cisternas, depois a outra. E assim sucessivamente, até que toda comunidade seja atendida.

Mulheres ativas
Na maior parte das comunidades, os homens são capacitados com cursos de pedreiro e ficam responsáveis pela construção das cisternas. Em Pernambuco, no entanto, algumas mulheres também estão virando "pedreiras". Aldo dos Santos afirma que esse processo gera autonomia, aumento da auto-estima e recupera a cidadania das mulheres. Ele acrescenta que, no semi-árido, a "água é um instrumento eleitoral muito forte. Muitos votos são vendidos em troca de um carro-pipa" e que o P1MC ajuda a quebrar essa dependência.

O jovem Itamar lembra também que os índices de cólera de sua região eram altíssimos, pois a população consumia água contaminada. "Com a construção das cisternas [na comunidade já existem cerca de 40], os índices de cólera e mortalidade infantil caíram", garante.

Outra mudança que Itamar sentiu em sua comunidade foi a estagnação do número de migrantes. "ASA fez com que a comunidade visse o mundo com outros olhos. Os jovens começaram a notar que o semi-árido é viável", afirma. Ele conta que até pouco tempo atrás, era comum ver jovens saindo da área rural e indo para cidades mais desenvolvidas. Agora, um movimento de luta pela terra e a favor da Reforma Agrária está se estruturando fortemente em sua região. Isso porque a população notou que o direito à terra é muito importante para o desenvolvimento das comunidades.

Um milhão em cinco anos?
Embora o Programa preveja a construção de 1 milhão de cisternas, desde 1999, apenas 50 mil foram construídas. Isso, de acordo Naidison, acontece porque o Programa começou de forma piloto e só no último ano ganhou impulso, com o apoio da Agência Nacional de Águas, do o Ministério do Desenvolvimento Social e da Febraban. Ele diz, no entanto, que ainda faltam recursos para atingir a meta prevista. E que, de qualquer forma, já são, no mínimo, 200 mil pessoas com acesso à água de qualidade e, portanto, menos expostas a doenças.

Aldo dos Santos completa que, se por um lado a meta de milhão de cisternas em cinco anos não vai ser alcançado, por outro, o número ainda tem um valor simbólico forte. Mostra que, "se não vamos construir todas as cisternas em cinco anos, a meta adverte que também não se pode esperar mais 100 anos para isso". Para ele, a "dimensão cidadã do Programa é tão ou mais importante do que a construção da cisterna em si. Porque há cinco ou dez anos, o governo começou a construir cisternas no Nordeste e elas acabaram sendo abandonadas pela população, que não se sentia dona da cisterna. Além disso, não adianta construir uma cisterna se não tiver por trás disso um processo educativo. O programa é um instrumento da cidadania. Não se pode perder a dimensão da transformação social", conclui.

A luta da ASA agora, de acordo com Naidison Baptista, é para dar visibilidade a outros de seus projetos e não tanto para o P1MC, que já obteve reconhecimento social. Ele conta que a articulação trabalha com projetos de utilização de biodigestores, que poderiam ser uma fonte de energia bastante interessante para as comunidades mais pobres do semi-árido (pois é possível gerar gás de cozinha a partir do esterco). Ou com a construção de barragens e cisternas subterrâneas, bombas manuais populares para retirar água dos poços artesianos que estão tampados porque têm pouca vazão (entre 100 e 1500 litros por hora), agroecologia, reflorestamento, qualificação de professores rurais, beneficiamento das frutas e o incentivo da agricultura familiar.

LAURA GIANNECCHINI
do site Setor3

 
 
 

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