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Governo
emancipa mulheres do interior de Pernambuco
Sem saber, o
governo tem sido responsável pela emancipação
de várias mulheres de uma cidadezinha, da Zona da Mata, chamada
Vicência. Com o dinheiro do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil (Peti) - uma bolsa mensal de R$ 25 por criança
de sete a 14 anos de idade -, as mães estão tomando
coragem de se emancipar. De 1996 à 200, as separações
e divórcios litigiosos triplicaram, os pedidos de pensão
alimentícia dobraram e as ações de investigação
de paternidade quituplicaram.
A 90 quilômetros
de Recife (PE), Vicência tem o segundo maior grupo pernambucano
de crianças inscritas no Peti: 1.548. Só perde para
Petrolina, que tem uma população nove vezes maior.
Os conselhos da merenda escolar, formado por mães e professoras,
recebem R$ 2,7 diários por criança inscrita no Peti.
O município é encarregado de pagar os professores
e criar espaços para manter o aluno na escola por oito horas
diárias. Galpões, garagens e antigas cocheiras dos
engenhos são usados como sala de aula pelo município.
Até a
prefeitura local é ocupado por uma mulher: Eva Andrade de
Lima, reeleita no ano passado pelo PMDB. Ela se cercou de mulheres
para dirigir o município e adotou o Peti como estandarte
da luta feminista. Atribui ao programa o dom de libertar as mulheres
de maridos violentos, infiéis, bêbados e farristas.
A prefeita é a primeira a dizer que o Peti dá suporte
financeiro para quem quer romper longos casamentos. Mesmo em condições
precárias, as mulheres de Vicência não medem
esforços para conquistar sua independência.
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mais
- O
perfume do poder
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O perfume do poder
A trilha sulca
canaviais, nesgas de floresta, bananais. Segue a ondulação
das colinas de Vicência, município a 90 quilômetros
do Recife. Um dia ensolarado fez minguar a lama da véspera.
A circunstância favorece o passo miúdo de Rosa e Rosenilda.
Partindo da casa de taipa no Engenho do Embu, as irmãs professoras
levarão uma hora e meia para chegar ao trabalho, na escola
do Sítio Taquari. Nos agostos chuvosos da Zona da Mata de
Pernambuco, o tempo de caminhada pode duplicar. De uniforme azul,
batom nos lábios, Rosa e Rosenilda, de 23 e 25 anos de idade,
são andarilhas veteranas. Filhas de um plantador de banana,
venceram cada noite do curso de magistério à custa
de três a quatro horas de marcha por estradas desertas. "Ser
professora era um sonho de criança", afirma Rosa. Ao
fim de um sorriso, a irmã repete a justificativa. Ilustram,
com suas biografias, a história de uma cidade de nome feminino,
onde as mulheres costumam ofuscar os homens e ganharam asas graças
às verbas federais do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil (Peti). Emanciparam-se economicamente e divorciam-se
sem medo.
A prefeita Eva
Andrade de Lima, reeleita no ano passado pelo PMDB, afirma que as
personalidades aguerridas de Rosa e Rosenilda refletem um traço
dominante da população feminina de Vicência.
E usa a tese como símbolo e bandeira de governo. Traz pronta
a lição de casa. Pediatra, entrou na política
em 1989, como secretária de Saúde do marido prefeito.
Ficou no cargo, mantida pelo sucessor. Eleita em 1996, transformou
o companheiro num discreto auxiliar. O ex-prefeito comanda a Secretaria
de Infra-Estrutura. Eva nomeou mulheres para chefiar quatro de cinco
pastas municipais, além da Tesouraria. Dos 40 postos de trabalho
existentes no prédio central da prefeitura, apenas 11 são
ocupados por homens.
A principal
vitrine do governo Eva é o Peti. O dinheiro do Planalto assegura
uma bolsa mensal de R$ 25 por criança de 7 a 14 anos de idade.
Os cheques são entregues às mães. Os conselhos
da merenda escolar, formados por mães e professoras, recebem
outros R$ 2,7 diários por menino ou menina inscrito no Peti.
O recurso também vem de Brasília. Cabe ao município
pagar os mestres e criar espaços para manter os alunos na
escola em jornada de oito horas diárias. A prefeita se esmerou
na tarefa. Tanto que 1.548 crianças da cidade são
beneficiadas pela verba federal. É o segundo maior grupo
do Estado - perde apenas para o de Petrolina, com população
nove vezes maior.
Para dobrar
o tempo de permanência das crianças nas acanhadas instalações
rurais, a prefeitura de Vicência usa galpões, garagens
e até antigas cocheiras dos engenhos. Nos espaços
improvisados, os estudantes recebem reforço escolar, brincam,
aprimoram-se no artesanato e aprendem música.
Diante do padrão
de vida das famílias locais, o Peti é uma dádiva.
Ainda assim, cada aprendiz anda descalço ou enfiado em chinelos
de borracha. Cruza córregos, cercas e densos canaviais para
chegar ao prédio escolar. Os cadernos ficam rotos e enlameados.
A precariedade circunda o ambiente. Salas de 10 metros quadrados
abrigam até 40 alunos. Na escola de Rosa e Rosenilda, um
vaso sanitário serve a 160 crianças. Em plena era
eletrônica, o mimeógrafo a álcool movido a manivela
é o equipamento mais sofisticado à disposição
do ensino.
Secundada por
um batalhão de professoras e supervisoras, a prefeita colou
no Peti o estandarte do feminismo. Atribui ao programa o dom de
libertar as mulheres de maridos violentos, infiéis e farristas.
Aponta mães que romperam longos casamentos assim que passaram
a receber os cheques do governo. É o caso de Silvania Maria
dos Santos Silva, com três filhos inscritos no projeto. Com
27 anos, ela reconhece que os R$ 75 mensais lhe garantiram suporte
financeiro suficiente para dar fim ao casamento de nove anos.
Antes, Silvania
trabalhava como doméstica. Ganhava R$ 70 mensais por até
12 horas de labuta por dia, sem folga remunerada. Dedica-se agora
a cuidar da casa e das duas filhas, enquanto tenta conseguir um
emprego mais bem remunerado. Não se arrepende da separação
de José Guilherme da Silva Terceiro. "Ele ficava bêbado
todos os dias." Silvania apanhava freqüentemente e vivia
sob a ameaça de morte à faca. Para coroar o rompimento
com a tradição machista da zona rural brasileira,
casou-se novamente há seis meses. Severino, o novo marido,
tem 19 anos. O ex-companheiro, 42.
As separações
e divórcios litigiosos triplicaram no Fórum de Vicência
entre 1996 e 2000. Dobraram os pedidos de pensão alimentícia
e quintuplicaram as ações de investigação
de paternidade. O auge do crescimento deu-se em 1998, ano em que
o Peti foi adotado no município. A relação
entre os dois fatos ainda é intuitiva. Falta um estudo mais
detalhado sobre as demandas de família e sobram casos de
separação que não chegam à esfera judicial,
como o de Silvania.
Juiz de Vicência
há oito anos, Milton Santana Lima Filho avalia que o dinheiro
do programa teve papel complementar nas separações
e litígios. Lima Filho define a mulher de Vicência
como uma "guerreira, que busca direitos na Justiça e
assume, sem embaraços, a liderança da família".
Com cinco anos de experiência em comarcas do sertão
de Pernambuco, o juiz arrisca uma comparação entre
as comunidades do semi-árido e as da Zona da Mata. "As
mulheres sertanejas submetem-se ao caráter destemido e independente
do homem da caatinga", opina. Por isso, raramente a mulher
busca a separação. "Na Zona da Mata, o homem
pobre acostumou-se a render subserviência ao senhor de engenho",
especula. "É um acomodado."
O discurso feminista
certamente favorece a rotina de trabalho do juiz. Afinal, divide
a cena com a promotora Selma Magda Pereira Barbosa e a chefe do
Cartório, Maria Cristina. Selma costuma dizer que as mulheres
de Vicência não apanham duas vezes. Maria Cristina,
de 34 anos, acaba de entrar na faculdade de Direito e comanda a
burocracia do Fórum.
A onda feminista
operou uma revisão da própria história do município.
Vicência Barbosa de Melo, a fundadora, era uma mulher só.
Sua residência, no século XVIII, foi a primeira construção
do povoado. A prefeita Eva diz que, até recentemente, a versão
predominante na cidade apontava a casa de "sá"
Vicência como sede de um bordel. A própria dona era
uma prostituta. "Fomos pesquisar e concluímos que estávamos
diante de mais um preconceito", redime-se a prefeita. A história
oficial reza agora que "sá" Vicência foi
uma empresária ousada do ramo hoteleiro. Graças a
ela, tropeiros e comerciantes passaram a ter pouso e comida na estrada
de Carpina para Aliança. A caftina que se transmudou em empreendedora
tornou-se, assim, precursora da cidade que se orgulha de gerar mulheres
fortes, herdeiras de seu espírito guerreiro.
(Época)
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