HOME | COLUNAS | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS
 
 

entrevista
19/07/2004
País terceirizou flagelo social, diz filósofo

O jargão das ONGs e a disseminação do marketing da responsabilidade social do setor privado provocam uma "barafunda mental" na discussão sobre a miséria e funcionam para legitimar uma nova "fronteira de negócios" em áreas descobertas pelo Estado, hoje ocupado exclusivamente em garantir o pagamento da dívida. Segundo o filósofo Paulo Arantes, este é um dos traços definidores da "questão social" na era petista.

Folha - O PT mobilizou durante duas décadas uma energia social pela mudança que agora, no poder, está tratando de frustrar. A ressaca que começa a pipocar por aí na esquerda é de que tamanho?

Paulo Arantes - A ressaca para a esquerda não foi tão destrutiva como se temia, estão quase todos vivos, embora a ficha de cada um deva cair no seu devido tempo.

Mas houve uma outra ressaca. Os mais bisonhos quando se recordam ainda falam em momento mágico, mas seria muito mais prudente denominar "desrecalque localista". E que ainda pode voltar, pois se trata de uma percepção pública administrável por um bom marketing.

Lembro que há meio século Antonio Candido assim batizou a redenção, pela impregnação da sensibilidade cultivada local pelos valores da modernidade artística e cultural, a reabilitação dos componentes mais vexatórios e por isso mesmo mais recalcados de nossa nacionalidade tida como primitiva. Pois o movimento que culminou na eleição de Lula pode ser encarado como um desrecalque desta mesma ordem, porém de um alcance "localista", praticamente do tamanho do Brasil profundo, e não tão profundo assim.

Os profundérrimos de plantão encheram a boca com aquelas besteiras que brotam do fundo da alma. O ornitorrinco começou a devanear, o animalzinho simpático. Foi um tal de matar as saudades do Brasil, de voltar a gostar do Brasil, de redescobrir a poética das formações incompletas, o charme inconfundível das sociedades felizmente mal-acabadas.

Remakes de alvoradas no morro, compositores vestidos de branco como anjos do tempo e da paciência. Como os milagres acontecem, éramos de novo uma sociedade nacional. Mas quem anunciava essa nova procissão de milagres era a mesmíssima elite em estado de secessão, rentista e dolarizada, embalada pelas novas promessas de um capitalismo de fundos de pensão. Desrecalque de alívio. O não-acontecimento de uma ruptura que nunca estivera nos planos de ninguém, outro suave fiasco, esse realmente histórico. Abortara afinal a cultura da reclamação.

Mede-se o respiro pelas comparações cretinas recorrentes. Na Venezuela, a gesticulação de um bufão deflagrara uma contra-revolução, assim sem mais. Na vizinha Argentina, o vírus populista do ressentimento consumira as derradeiras energias. O Brasil se transformara enfim numa ONG torrencial. Vamos ver a quem será apresentada a conta.

Folha - A quem será?

Arantes - Sabe-se até bem demais. A economia nacional resume-se hoje ao serviço da dívida para assegurar a renda mínima do capital, como diz o João Sayad, o qual obviamente -o capital, não o João- não tem o menor interesse que ela algum dia seja paga.

Seria o caso até de processar o Estado por lucros cessantes. Deu-se com isso a progressiva terceirização de funções do Estado por uma fauna de ONGs, ressalvadas as boas almas de praxe. Verdadeiras máquinas de sucção e repasse de verba, e tome informalização do trabalho. Tudo isto é sabido, não é de hoje que o sopão do terceiro setor é engrossado por patronesses ao lado de cooperativas de fachada, banqueiros-cidadãos, corretores de inclusão social e por aí afora, nessa nova fronteira de negócios. Mas o principal benefício é sobretudo ideológico.

A barafunda mental disseminada pela parolagem da responsabilidade social e outros malabarismos de marketing. Eficácia ideológica assegurada por uma linguagem híbrida -novo jargão da autenticidade. A fome de transcendência parece ter voltado com força total com a "sociedade civil". Medida profilática de higiene política: todo o dia ao se levantar prometer não empregar a dita cuja e seus derivados e similares.

Como isso ainda é remoto no Brasil, mas não a sua aura, deixo de lado outra dimensão-chave do terceiro setor, o negócio "humanitário" e os "campos" que vai semeando mundo afora nas fronteiras do novo imperialismo. Foi nesse terreno que no fim dos 70 a nova esquerda, hoje nova direita, começou a embarcar na "era da emergência", e emergência como sucedâneo da ultrapassada política do confronto, movida a ressentimento e outras paixões tristes.

O novo espírito do capitalismo mora neste jargão da autenticidade empresarial-cidadã, gerada entre o novo management flexível e as sobras ritualizadas do ideário meia-oito, a derradeira isca a pôr de joelhos a esquerda agradecida.

Folha - E o governo do PT, como entra nessa história?

Arantes - Escaldado pela derrota de 89, o PT já pegou este bonde andando. Aos poucos o encaixe se tornou perfeito. Quando os distraídos abriram os olhos, CUT e Bank Boston já estavam namorando firme. O Banco Central foi apenas mais uma parceria. A novidade, visível na atual cinematografia onguista, consiste na maneira pela qual o acervo do desrecalque localista do momento injetou matéria brasileira estilizada neste jargão da autenticidade que circula entre as classes confortáveis do país e do mundo, e logo chegará à doméstica de celular via novela e marketing interativo. Quando o populismo lulista precisar arregaçar as mangas em defesa do espólio recente, a linguagem já estará prontinha da silva. É o que lhe resta. Mais as bolsas-padrão Banco Mundial.

Como de desenvolvimento nunca ouviu falar, tanto é que deixou que sitiassem o velho Banco do Largo da Carioca, e a macroeconomia, outra enjeitada, ficou com os seus donos de sempre, sobrou para oferecer ao distinto público, como prata da casa, a figura do "operador" de palácio e Congresso, mas este qualquer bicheiro derruba, em geral a pedidos.

As informações são da Folha de S.Paulo.

   
 
 
 

NOTÍCIAS ANteriores
16/07/2004 Campanha recebe 300 armas no 1º dia
16/07/2004 Campanha arrecada 11 milhões de agasalhos
16/07/2004
Aumentam investimentos em projetos sociais
16/07/2004
'Ação da Cidadania' promove no Rio 1º Censo Social do Desemprego
16/07/2004 Falta de qualidade é o problema real da educação, dizem especialistas
16/07/2004 ONU apóia cotas, mas faz ressalvas
15/07/2004 Brasil cai sete posições no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU
15/07/2004 900 milhões de pessoas são discriminadas
15/07/2004
Desembargador: abrigos são escolas de crimes