Bastidores da arte: veja o trabalho por trás de grandes exposições em SP

"Estão todos aqui? Podemos abrir?", pergunta uma produtora do Instituto Tomie Ohtake, como se estivesse prestes a iniciar uma cirurgia.

"A partir de agora ninguém pode tocar em nada sem usar essas luvas", ela explica para os assistentes.

Um deles desaparafusa a tampa de uma caixa de madeira de três metros de largura, que é levantada por três pessoas. Ali dentro, depois de camadas de material isolante, estão diversas caixas menores.

Carla Ogawa, a produtora, delicadamente retira de dentro de uma delas uma máscara africana protegida por um tecido especial, vinda do museu do Quai Branly, na França. Ela faz parte da mostra "Histórias Mestiças", em cartaz no local.

A execução de grandes exposições é um processo longo e burocrático que leva até dois anos. Entre captação de recursos, negociações com museus e colecionadores particulares, prazos e o processo de transporte, a abertura das obras é o momento mais crítico.

"É tudo muito minucioso, pois qualquer descuido pode danificar obras de valor inestimável", diz Maria Ignez Mantovani Franco, presidente e criadora da Expomus, empresa paulista que monta exposições sob encomenda.

A companhia organizou, da concepção à recepção do público, mostras como "Impressionismo: Paris e Modernidade", para o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) e "Mayas: Revelação de um Tempo Sem Fim", para a Secretaria Municipal de Cultura.

Com museus e espaços culturais batendo recordes de público graças a mostras como "Obsessão Infinita", da japonesa Yayoi Kusama (que levou mais de 500 mil pessoas ao Instituto Tomie Ohtake), este mercado tem se fortalecido na cidade.

"Dez anos atrás era muito mais difícil achar mão de obra de qualidade", diz Maria Ignez, que contrata outros fornecedores. Há empresas especializadas em cada parte do processo: do transporte às filas.

"Tenho recebido mais pedidos do que posso atender", diz Wagner Barbosa, um dos sócios da EWA. A companhia fornece seguranças que, além de protegerem o acervo, orientam o público em eventos culturais.

Na transportadora Millenium, a arrecadação com o traslado de obras de arte cresceu 400% nos últimos cinco anos. "Começamos a nos especializar na área há dez anos e hoje ela corresponde a 70% dos negócios", diz o gerente Miulnei Barbosa.

ATENÇÃO AOS DETALHES

Quando chegam do exterior, as caixas precisam esperar de um a três dias antes de serem abertas para que possam se "aclimatar". Também é necessária a presença de um responsável do local que faz a mostra e de um courier, representante do museu de origem.

"Às vezes eu apareço durante a montagem. Não posso nem chegar perto [das obras] sem luva que já levo bronca", conta Ricardo Ohtake, diretor do Tomie Ohtake.

O courier e o fiscal usam uma lupa para procurar qualquer dano que possa ter sido causado pela viagem e anotam tudo em um laudo. No total, são quatro registros como esse para cada obra -um antes de sair do museu, um no de destino, outro antes de voltar para casa e um último ao chegar.

Segundo a diretora da Expomus, na mostra sobre o impressionismo, em 2012, esse processo de abertura foi repetido uma vez para cada uma das 85 obras que vieram do francês Museu d'Orsay. Na sobre os maias, que acabou de ser desmontada na OCA, foram 390 trabalhos centenários vindos do México.

Em "Histórias Mestiças", a situação foi ainda mais complicada: como inclui obras de diversas instituições diferentes, foi preciso agendar a abertura de caixas com 40 couriers. "Foram três dias só para desembalar as peças", diz Veronica Arruda, diretora de produção do Tomie Ohtake.

CANTEIRO DE OBRAS

Normalmente, a colocação das peças dura uma semana e a montagem da expografia -os ambientes nos quais estarão dispostos os trabalhos-, cerca de um mês. Nessa etapa os museus se transformam: paredes são erguidas e mudam de lugar, luzes são instaladas ou retiradas, vitrines e colunas vão para os cantos escolhidos pelo curador.

Na 31ª Bienal de São Paulo, aberta para o público neste fim de semana, a montagem da expografia foi no início de agosto. O pavilhão da Bienal mais parecia um canteiro de obras. Uma empilhadeira passava entre as colunas do segundo andar e o prédio, no parque Ibirapuera, vibrava. Havia cheiro de tinta, barulho de motosserra e, enquanto funcionários erguiam uma parede, outros instalavam caixilhos de luz.

"Era muito mais fácil quando você só colocava uma fotografia na parede", desabafa a coordenadora geral de projeto e produção da Bienal, Dora Silveira Corrêa. Ela se refere ao grande número de instalações, performances, vídeos e outros recursos comuns à arte contemporânea que tornam a montagem ainda mais complexa.

Nesta edição, 64% das obras foram pensadas especialmente para o evento e boa parte criada no próprio prédio, duas semanas antes da abertura. Diversos artistas trabalhavam ao mesmo tempo enquanto os últimos detalhes estruturais eram acertados.

Um dos motivos pelos quais o quebra-quebra dura até o último minuto é que alguns dos cerca de cem artistas dão instruções para a criação de instalações e só veem as obras quando já estão prontas -não é incomum pedirem mudanças.

Os curadores também fazem ajustes. Neste ano, com cinco curadores, o clima era de tensão entre os envolvidos na montagem. "É muita gente no comando, cada um pede uma coisa. Estamos enlouquecendo", diz um deles, que não quis ser identificado.

ARTE CONTEMPORÂNEA

A produção da Bienal tem outros desafios. Precisa lidar com demandas como a de 200 favos de mel vazios -pedidos pela artista Anna Boghiguian para a obra "Cities by the River". "Tenho que fazer três orçamentos para tudo por causa da Lei Rouanet [lei de incentivo que permite o financiamento da Bienal], e só pensava: 'onde vou achar três lugares que vendem favos de mel usados?'", conta a coordenadora de produção, que acabou encontrando um produtor que guardava os favos.

Outro desafio foi conseguir um baobá -árvore que chega a ter 20 m de altura e tronco que pode alcançar 10 m de diâmetro- para Alessandro Petti, Sandi Hilal e o Grupo Contrafilé suspenderem no pavilhão. Foi preciso pensar em como regar, manter a planta saudável e até em trocá-la.

"Nem sabia que existia baobá no Brasil. Agora sou especialista e cada produtor acabou ganhando um exemplar da árvore", conta Dora, que diz estar acostumada a providenciar materiais inusitados. "É muita coisa para organizar ao mesmo tempo, mas nada que seja impossível. E vale a pena quando você vê como as pessoas ficam impressionadas", diz ela.

INDO E VINDO

Tanto para obras contemporâneas quanto para pinturas do século 17, o translado é outro momento crítico. Como as peças não podem ser deitadas, as mais altas viajam de navio ou em aviões cargueiros. É o caso de duas pinturas com mais de 2,80 m do holandês Albert Eckhout que vieram do Museu Nacional da Dinamarca em agosto para "Histórias Mestiças".

O voo com as peças chegou a São Paulo às 3h da madrugada e as duas restauradoras que acompanhavam "Mameluca" e "Negro Man" se revezaram para dormir enquanto esperavam a chegada dos funcionários da alfândega. Os quadros, de 1641, não podem ficar sozinhos em momento algum da viagem.

"Eles são os queridinhos do museu" diz a dinamarquesa Barbara Berlowicz. "Só permitiram a viagem longa pelo caráter da exposição e pela relação [dos quadros] com o Brasil". Os retratos etnográficos foram feitos a partir das observações do pintor holandês em Pernambuco.

O seguro é feito "prego a prego" -ou seja, cobre desde o momento em que um quadro deixa a parede do museu de origem até seu retorno.

O valor raramente é divulgado e varia de acordo com o número das peças. A obra "Medusa Murtola", que veio a São Paulo para a mostra "Caravaggio e Seus Seguidores", por exemplo, teve um seguro individual de 55 milhões de euros (cerca de R$ 160 milhões). Segundo especialistas no setor, a apólice não costuma ser tão alta e fica entre R$ 50 mil e R$ 50 milhões. Muitas vezes não cobre o valor total das obras.

A Expomus tem uma equipe que acompanha a chegada, recebendo as encomendas na pista do aeroporto. Por segurança, as obras não são transportadas todas no mesmo voo.

Os trâmites com a Receita Federal em geral são feitos com antecedência -as obras não podem ficar paradas na alfândega, que não tem condições de armazenamento. Algumas conseguem dispensa de conferência. "Fazemos reuniões com a receita para evitar a abertura de caixa no aeroporto e não deixar nada retido de um dia para o outro", diz Maria Ignez.

Há quem não tenha tanta sorte. As 57 esculturas de mármore do uruguaio Pablo Atchugarry ficaram uma semana na fronteira. Elas vinham do Uruguai em quatro caminhões para a mostra "Viagem pela Matéria", no MuBE, que comemora os 60 anos do artista. "Tínhamos adiantado os documentos, mas a burocracia no Brasil é complicada", reclama Piero, filho do escultor e responsável pela logística do transporte.

Esculturas grandes como as de Pablo -a maior mede 3,15 m e pesa três toneladas- só conseguem entrar nos museus durante a noite. Para que elas fossem colocadas no MuBE, a rua Alemanha, no Jardim Europa, precisou ser fechada. Um guindaste de 70 toneladas retirou as obras do caminhão e as colocou em pontos mais firmes do museu para não afundarem o piso.

SEM DESCANSO

O trabalho não para quando a mostra é aberta. Porque a lotação máxima de 1.700 pessoas tem sido atingida todos os dias na exposição sobre o "Castelo Rá-Tim-Bum", em exibição no MIS (Museu da Imagem e Som), diversas adaptações tiveram que ser feitas no ambiente, que reproduz o cenário do programa da TV Cultura.

Alguns bonecos foram substituídos. "As pessoas querem interagir. Um garoto chegou a levar o boneco do ratinho para outro ambiente", conta Marcelo Jackow, da Case Lúdico, que idealizou e montou o cenário a pedido do MIS.

Os figurinos originais dos personagens, antes em uma plataforma, foram protegidos. "Acrescentamos uma vitrine em volta, porque as pessoas tocavam nas peças e subiam para tirar fotos", diz Bruno Ogura, outro sócio da Case Lúdico.

Segundo o diretor do MIS, André Sturm, a montagem de área para fotos é algo que o museu sempre tem incluído nos últimos projetos. "Hoje em dia é preciso pensar que as pessoas vão não só pela experiência, mas também para poder dizer que foram. Tirar fotos é fundamental", diz ele (leia mais na pág. 34).

Em mostras em que o horário é ampliado para dar conta do público, como a do Castelo e a de Yayoi Kusama, resta pouco tempo para limpeza e reparos -que são feitos com mais cuidado às segundas, quando a maioria dos museus não abre.

Na desmontagem, o processo milimétrico de preparação das obras é repetido. E não pode atrasar: além de prazos para o empréstimo das peças, algumas exposições vão direto para outros países. E os espaços, logo em seguida, começam a ser preparados para outros convidados.

É o que vai acontecer no Instituto Tomie Ohtake em outubro: assim que for desmontada "Histórias Mestiças", no dia 5, o local inicia as preparações para receber obras do surrealista Salvador Dalí, cuja exposição inaugura no fim do mês, vinda do CCBB do Rio de Janeiro.

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