'Crianças têm que saber que o mundo não é de pelúcia', diz artista e escritora

A voz da paulistana Katia Canton emana de casinhas habitadas por bonecas-princesas: "Adormecida, sono profundo, feito delírio induzido. E, então, vem o susto: sexo não consentido. Enquanto isso, um belo príncipe de armadura marcha. Eternamente ausente".

São instalações da artista, que apresenta sua visão dos contos de fadas na mostra "Ontem".

Em cartaz na galeria Paralelo até 4/4, a exposição inclui desenhos, pinturas e objetos que decifram e atualizam as fábulas.

No tempo, grande parte das histórias remonta à Idade Média —não raro em narrativas originalmente violentas. No espaço, ganharam o mundo.

"Cinderela foi encontrada em 409 versões da Índia à China", diz a artista, comunicadora, escritora e vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP.

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sãopaulo - Qual a sua fábula preferida?
Katia Canton - A "Cinderela", esperando a atenção do príncipe, como 99,9% das mulheres que entrevistei. Nossos desejos, no fundo, estão ligados ao ideal romântico.

E como surgiu o amor pelos contos?
Eu fui uma criança tímida, não brincava na rua. Uma tia-avó, a Cecília, vivia no mesmo prédio e era contadora de histórias. Ela nunca saiu de mim; estudei, dei aulas de dança, desenhei e escrevi poesia, mas sempre me perguntei: por que todas as princesas eram loiras de olho azul? Por que faziam tantos sacrifícios em nome de um príncipe?

Elas ainda o fazem?
Com certeza. O príncipe hoje é um conceito variado, mas ainda permanece a busca de ser feliz para sempre.

Como surgiram os contos de fadas?
São dramas reais que se propagaram pela tradição oral. O Homo sapiens conviveu com outras espécies, como o Neandertal, e o que nos fez sobreviver foi a capacidade de criar histórias. Manuscritos medievais já traziam essas narrativas em versões eróticas e violentas.

Por exemplo?
"A Bela Adormecida" é um conto de estupro. Era comum nas Cruzadas que os cavaleiros voltassem de viagem e pegassem as moças dormindo. Algo permitido.

Qual o papel atual das fábulas?
Elas transcendem as dificuldades e ensinam pelo lúdico e pelo trágico. Participo de projetos na periferia e vejo como os contos ajudam o jovem a projetar alternativas. O ruim é que se conheçam só versões congeladas, como as dos estúdios Disney, o Lobo Mau amigo dos porquinhos... Lobos comem porcos. A violência é importante. A criança deve saber que o mundo não é fofo, feito de pelúcia.

Como é conciliar arte e trabalho?
A vice-diretoria do MAC é uma honra, mas algo que aceitei porque tem momentos para começar e terminar. Neste ano, vou expor em Roma e Berlim. Rejuvenesci desde que voltei às artes.

Qual é o seu bairro?
Pinheiros, onde vivo. Gosto de andar a pé, imprimir minhas fotos, comprar telas e molduras. Na esquina de casa tem uma editora jovem, com uma moçada bonita e toda tatuada, e do outro lado da rua há velhinhos que ainda plantam rosas na calçada. Essa é a graça.

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