Funkeiros de 8 a 21 anos ganham fãs e desafetos com letras de sexo e recalque

Antes de encerrar o show, MC Pedrinho pediu desculpa. Ele queria se redimir por causa do "ocorrido do Helipa".

Eram quase 21h do dia 12 de abril, e muito carro ainda não tinha ido embora daquele domingo de uísque, lança-perfume, mulher R$ 10 e homem R$ 30 que atravessou a tarde em uma chácara em São Bernardo.

Depois de meia hora cantando, o garoto de 12 anos saiu vaiado por parte da plateia, formada por maiores e menores de idade.

Ícone do funk ousadia —nova onda surgida na periferia paulistana e marcada principalmente por letras de cunho sexual embaladas por melodias e vozes infantis—, uma semana depois o pequeno ídolo postou um vídeo em seu Facebook, seguido por mais de 1,2 milhão de pessoas.

Ao lado do empresário, ele reitera que foi tudo uma brincadeira mal entendida e que nada tem contra Heliópolis —local de um grande "fluxo", como são chamadas as festas de funk na rua convocadas por redes sociais e que também servem de termômetro do sucesso de uma composição.

Mas está lá. Uma gravação digna de torcida colegial na qual Pedrinho rima "ipa, i-ipa, os caras do Helipa chupam minha p..." caiu na inquisição da rede virtual e agora consta no boletim de ocorrência de seu currículo.

Blindado para entrevistas pelo grupo GR6 (que gerencia sua carreira ao lado de outros nomes em evidência, como MC Livinho, cantor de "Picada Fatal", com melodia do tema do clássico "Cinderela"), o baixinho de cabelo platinado, que dá voz à letra sobre a "novinha experiente" que nasceu com o "dom" para "um b... bom" e já teve shows vetados pela Justiça (seu cachê é cotado em R$ 5.000 por apresentação), vem perdendo o posto de funkeiro mais polêmico do momento. Porque o Brasil conheceu a MC Melody.

A menina de oito anos, que ainda não gravou profissionalmente —fez apenas vídeos caseiros e já teve uma fanpage retirada do ar por denúncia de usuários—, virou assunto pelos trejeitos e roupas de adulto (às vezes enchimento no bojo do sutiã) com que figura em fotos com dinheiro e em gravações rebolando com a mão na parede e cantando sobre "recalque" e "ostentação" —sem palavrão ou sexo.

A epítome é a filmagem de cerca de dois anos atrás, que circula agora, em que ela aparece dançando o "quadradinho de oito", passinho da moda há alguns verões. Daí para virar hashtag e ser citada em sites e programas de TV foi mais rápido que a velocidade cinco do "Créu".

Tudo empresariado pelo pai, Thiago Abreu, 27, o MC Belinho —que aparece cantando no mesmo vídeo. "Eu colocava muito vídeo dela cantando gospel na minha página. As pessoas começaram a falar bem e a pedir mais. E postei essa primeira de funk ["Fale de Mim"]. E começaram a denunciar", diz o MC, que escreveu a letra em questão há quatro anos pensando em sua outra filha, Bella, 10, que também canta funk, mas nunca chegou a gravá-la.

Fã do Bob Esponja e dona de um burrinho de pelúcia chamado Pitoco, Melody ainda se atrapalha em algumas palavras e mostra-se mais tímida do que sugere sua versão na web, apelidada de MC Pampers (a marca de fralda).

"Eu sou a mesma menina de sempre, só muda que eu canto. Adoro cantar. Quero fazer isso mesmo. Quero ficar igual à Anitta", afirma, eventualmente escapando o olhar para o pai, que faz adendos e às vezes a corrige, em voz paternal, detrás da câmera da "TV Folha" [assista ao vídeo nesta matéria].

"Falam que eu estou aliciando minha filha, ganhando dinheiro com ela. Nunca ganhei um real dela. Não almejo ficar rico com isso. Quero realizar o seu sonho. Nessa idade eu já cantava, mas não tive o apoio dos meus pais. Faço por ela o que não tive", defende-se, dizendo que até hoje agendou poucos shows para a garota, geralmente matinês e festas de 15 anos aos fins de semana, "para não atrapalhar a rotina de criança dela. A criação não mudou, ela é super-cuidada e educada", conta o morador do Jardim Brasil, na zona norte.

Ele diz filtrar o que suas filhas consomem e que não as deixa escutar suas músicas antigas, da linha baixaria.

A própria Melody afirma não ser chegada ao trabalho de alguns de seus contemporâneos mirins, como o MC Brinquedo, 13, e o MC Pikachu, 15.

"Eles falam muito palavrão. Acho chato. Quando cantam músicas deles na minha sala, até peço pra pararem, porque isso não é coisa de criança", conta. A entrevista terminou às 13h. Ela tinha que ir para a escola.

Vinícius voltava do colégio particular quando entrou cantando em sua casa no Jardim Arco-Íris (zona sul). Sua mãe, a costureira Lidiane dos Santos, 33, passava o bife e falava sobre o filho que hoje não consegue mais andar no shopping sem ser tietado —inclusive nos chiques.

O garoto, de 13 anos, ainda de uniforme, sentou-se à mesa e logo pegou uma batata recém-frita para o almoço. Sob o boné, a marca registrada: o cabelo nas cores Keraton Hard Colors "insane pink" e "ecstasy blue".

São dele, MC Brinquedo, os bordões "eu sou malandrão" e "meça suas palavras, parça", que circulam na internet e nas bocas de jovens do CEU Uirapuru ao Colégio Bandeirantes em diferentes variações (inclusive contra a homofobia) e cativaram até o Supla ("ele tem atitude e a cabeça superaberta, tá ligado?", disse o roqueiro).

Sem desgrudar do iPhone ("a gente tem que ficar por dentro de tudo, né?"), no qual movimenta seu Instagram e não para de trocar mensagens no grupo "União e Progresso" —que reúne amigos do funk no WhatsApp—, o adolescente evitou tomar refrigerante gelado e encerrou a refeição chupando balinhas de gengibre.

Desde que entrou na puberdade, ele diz tomar cuidados com a voz, inclusive fazendo aulas de canto. "Ainda não tô acreditando [no sucesso], fiquei felizão. Mas o que minha produtora e eu queremos é muito maior", afirma.

Sua música mais conhecida, "Roça Roça", ainda toca em fluxos da cidade —aos quais a mãe não o deixa ir pela idade—, mas suas rimas podem amenizar daqui para a frente.

"Estamos repaginando o repertório", conta Lidiane, que diz não gostar do ritmo que o rebento canta, mas é da opinião "que cada um tem sua época". "Na minha era lambada." "Acho algumas letras pesadas. Falo: 'Faz uma um pouquinho mais leve'. Mas a molecada gosta, é o que querem ouvir. Prefiro apoiar meu filho cantando a vê-lo perdido nas ruas", diz Lidiane.

Outro foco são os vídeos que ele posta no YouTube jogando Minecraft, game sobre o qual Brinquedo já fez uma música no ritmo de "Roça".

FÁBRICA DOS SONHOS

No banco de trás do Palio recém-comprado de presente para a mãe com o dinheiro de seu trabalho, Brinquedo dormiu o caminho todo até a KL Produtora, na mesma zona sul. É lá, num sobrado com piscina e reforma em andamento, que Emerson Martins, 42, mora e comanda a carreira de 15 funkeiros entre 13 e 22 anos.

Autodenominada "fábrica dos sonhos", ali são pensados os vídeos, cabelos, nomes e interação dos artistas, que convivem constantemente pelos corredores, almoçam, trocam rimas e gravam no estúdio. Vira e mexe um dos artistas dorme por lá —antes das obras recentes houve um quarto com beliches apelidado de Turquia em referência à novela "Salve Jorge".

"Eles me chamavam de Russo, porque eu chegava gritando e mandava todo mundo dormir", diverte-se Emerson.

Mas ele fica possesso quando o assunto chega ao fato de seus artistas menores de idade cantarem músicas sobre sexo ou drogas (ou os dois). Para ele, isso é "pura hipocrisia". "Eles cantam a realidade do que está nas ruas, na televisão aberta e na internet, que é a diversão deles. O que eles encontram lá? Safadeza! A própria 'Roça' o Brinquedo tirou da TV", diz. O garoto depois explicou que sua ideia sobre as desventuras amorosas de um jovem caipira veio de um filme e, mais tarde, foi apimentada com a ajuda de outros MCs da casa.

É comum esses cantores gravarem versões de seus hits com palavreado mais "light", para rádio e TV.

Como outros envolvidos no mercado, Emerson cita exemplos que vão de Sandy & Júnior a crianças que dançam Beyoncé, passando pela boquinha da garrafa e pelo grupo Mamonas Assassinas, para defender que o problema, na sua opinião, é o preconceito contra o funk.

"Aí o que acontece? Chega uma banda sertaneja pedindo liberação pra gravar uma música dos meus meninos. Só que a banda é tão grande que vai tocar no Brasil inteiro. 'Ah, mas é de maior'. Automaticamente vai chegar ao ouvidinho das... Crianças!"

Completam o "quarteto diferenciado", trunfo da KL Produtora, MC Bin Laden, MC Pikachu —um adolescente de 15 anos cuja timidez contrasta com a energia de suas apresentações sob o lema "choque nelas" (ele tem vídeo fazendo cocô na rua e ajudou a pagar a reforma da casa da família com a grana da música).

E também MC 2K, filho do empresário, que, aos 21 anos, diz ter voltado a focar no trabalho após a esbórnia do sucesso de seu hit "Ziriguidum" (2013).

"O Pikachu é virgem. O Brinquedo também. O Bin Laden vai pra igreja. Ele tava num fluxo quando ouviu alguém falar 'ó o lança, quem não bafora não transa' e resolveu colocar na música", conta Emerson.

"Não tem como incentivar o que já fazem", diz Bin Laden, de 21 anos (três namorando), nascido numa favela na Vila Progresso (zona leste), apelidado com o nome do terrorista saudita e cujas fãs são chamadas de iraquianas.

O jovem de cabelo branco e preto (por causa do "yin-yang"), que não completou os estudos e hoje comprou um apartamento, se inspirou no barulho de uma moto na rua para fazer "Bololo Haha", tocada pelo DJ americano Skrillex em uma apresentação. Recentemente, ele (Brinquedo também) foi convidado para gravar com o produtor americano Diplo.

"Não conhecia ele, mas vi que o cara é um monstro. Pra mim, isso é a maior satisfação", celebra Bin Laden. Hoje em dia seu cachê chega a R$ 8.000 por show na capital paulista. O dos outros três gira em torno de
R$ 3.000. A KL ainda tem em seu plantel as MCs Princesa, 19, e Plebeia, 16.

O valor arrecadado, segundo Emerson, é dividido meio a meio entre a produtora e o músico (ou responsável). Alguns gastos também, como roupas, passeios e as mensalidades das escolas privadas nas quais os dois adolescentes foram matriculados recentemente (ao custo de cerca de R$ 1.200).

"Ninguém vem aqui falar da oficina de DJ que a gente tem, nem ver 20 pessoas comendo por aqui todo dia", reclama o empresário.

"O mal de todo mundo é achar que funkeiro é ignorante. Aqui a gente faz projeção de carreira. Procuro passar para eles que a música não é só o funk. Quero que quando eles pegarem uma Marília Gabriela de frente saibam cantar e conversar coisas diferentes", explica Emerson.

E continua: "Outro dia passei pra eles um filme sobre a Whitney Houston. Eles não conheciam. Sou fã, mas tem uma passagem muito ruim na vida dela, da decadência com as drogas. Depois mostrei 'O Guarda-Costas' [filme], pra eles entenderem como é lidar com a fama, que também traz solidão."

JUSTIÇA

Mas a Justiça discute as várias outras questões, julgadas nos foros relacionados ao trabalho e à juventude.

Quando ajuizou a ação que inviabilizou o show do MC Pedrinho, 12, em Araçatuba, em janeiro, o promotor Joel Furlan atentou para o fato de o jovem não possuir autorização judicial para o trabalho.

"O teor das músicas não foi o motivo principal da não realização dos eventos, mas um dos argumentos", escreveu à sãopaulo, por e-mail. Medidas aplicadas tanto aos responsáveis quanto aos menores envolvidos são decididas caso a caso —e podem, no extremo, resultar na perda de guarda.

"A busca da exposição é moda. Colocar fotos, tornar-se conhecido, ganhar seguidores... Os pais deveriam cuidar da privacidade dos filhos. E essas atividades, ao contrário, os expõem", diz o juiz Reinaldo de Carvalho, da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional da Lapa.

Mesmo fora dos tribunais, até quem já fez parecido hoje é contra letras de cunho sexual interpretadas por crianças. Com a palavra, o carioca Jonathan da Nova Geração, que nos anos 1990, aos sete anos, ficou famoso pela música em que mandava a potranca dançar com emoção.

"A maioria dos MCs não compõe, é intérprete. Nesse caso específico, os adultos envolvidos nesses produtos deveriam ser punidos", enfatiza o filho do dono da produtora de funk Furacão 2000.

Sobre o impacto no comportamento e desenvolvimento destes jovens, também é difícil projetar um resultado, segundo especialistas.

"Sim, a infância tem sido cada vez mais erotizada. Mas é importante deixarmos moralismos de lado e percebermos que a criança é fruto do comportamento dos adultos à sua volta —não só pais e empresários, mas também da audiência, quem compartilha", avalia Rosely Sayão, 65, psicóloga e colunista da Folha.

"Vivemos num mundo em que a infância e a velhice desapareceram. A criança já nasce sendo tratada como jovem e o velho quer permanecer jovem. Toda vez que uma etapa da vida acaba precocemente ou é pulada, ela vai retornar. Como, a gente não sabe. Mas hoje temos um mundo adulto muito infantilizado", diz, lembrando que uma das últimas sensações do mundo adulto é um livro de colorir.

"A maneira como isso se manifesta no estilo de vida é característico da classe social, regional... Mas o fenômeno independe. A criança que canta funk não tem grande diferença da criança cheia de cursos para ser modelo. Ambas podem não ter tempo livre para serem crianças", conclui.

"Essa expressão [o funk] explora valores e reflexos sociais. Vive-se hoje um reflexo do que está sendo valorizado e consumido, que é o apelo sexual", avalia o psicólogo e secretário-geral da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade, Itor Finotelli Jr.

"O papel da orientação é fundamental para a forma como ele será compreendido. Do contrário, irão se comportar como fantoches sociais. Essa reflexão não deve ficar restrita a um ensino formalizado, mas difundida em família e sociedade."

Quando Julio Ludemir, 55, tinha 12 anos, ele também só pensava em sacanagem. "A diferença é que eu não tinha YouTube nem empresário", diz.

Segundo o autor de "101 Funks Que Você Tem Que Ouvir Antes de Morrer", a atual sensação paulistana do funk ousadia surge como "uma brincadeira de molecada na internet, porque há crianças operando nas redes sociais".

"Isso viraliza e vai pro baile, e à medida que viraliza existe a lógica do CTRL+C, CTRL+V [comandos de copiar e colar dos computadores]. Deu certo, copia. E o baile é antropofágico. Ali vai se retroalimentar e voltar com outra característica", analisa o escritor.

"Costumo dizer que o funk é como a torcida do Corinthians ou do Flamengo: sempre muito 'over', muito popular, e termina sempre saturando. É o gênero dos MCs de um sucesso só, das transições muito rápidas. O funk percebe quando está cansado e sempre encontra forças para dialogar com seu público. Daqui a um ano vamos estar falando sobre outra onda", diz o escritor.

Como nova tendência, Renato Barreiros, diretor do documentário "No Fluxo" (2014), cita o "neoproibidão", com músicas inspiradas em vilões de quadrinhos e videogames.

INQUÉRITO E DESCULPAS

Antes de acabar o mês, MC Belinho pediu desculpa. Ele queria se redimir pelo jeito como expôs a filha Melody até então.

Era 22 de abril, e muito link, foto e vídeo já tinha chegado ao promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira, que se baseou em artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição para instaurar, no dia 23, um inquérito –que pode se desdobrar em ação civil pública, termo de ajustamento de conduta ou arquivamento.

A determinação do Ministério Público, que reúne referências de "exibição de meninas e meninos cantando e desempenhando coreografias inadequadas, para suas faixas etárias, em especial pelo forte conteúdo erótico e apelos sexuais", sugere a investigação de responsáveis pela "violação ao direito e respeito e à dignidade de crianças e adolescentes por parte destes MCs e seus produtores e publicadores na rede mundial de computadores". Melody e outros nomes mencionados aqui são citados no documento.

Funkeiro há sete anos, mas vivendo da música há dez, nos últimos dois meses Belinho publicou vídeos xingando quem xingava sua filha; mudando de ideia; dizendo que agiu errado e que há "um pouco de razão em pensar o que estão pensando"; que na época não viu maldade na dança da menina; que vai mudar o foco da carreira dela; cantando por perdão e chorando porque a filha perguntou se vão tirá-la dele. "A gente não sabia que ia chegar onde chegou, achou que ia ficar na brincadeira", diz.

Só que a internet não mede palavras, "parças".

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