Em SP desde o século 19, comunidade síria se reúne para ajudar refugiados

Quando a síria Azize Kaba chegou a São Paulo em 1926, colocou seus olhos azuis sobre a cidade, então atravessada por rios e bondes, e disse: "Então isso aqui é a América?". Era o fim de uma viagem de semanas dentro do navio Guarujá, que partiu do porto de Marseille, na França.

Mal sabiam os imigrantes que seu destino poderia ser Estados Unidos, Argentina ou Brasil, ponto final para a família Kaba. O filho Naim, que tinha dez anos, guardou por décadas a pergunta e a expressão intrigada da mãe. É Nailize, a neta dela, que narra a história.

Os atuais conflitos na Síria, razão do deslocamento de milhões de pessoas, fez com que o mundo voltasse os olhos para o país árabe. Na América Latina, o Brasil é o que mais concedeu asilo aos refugiados da guerra civil, concentrados em São Paulo. De 2013 até 17 de setembro, 5.346 sírios chegaram ao país pela capital paulista. Mas a cidade convive desde o fim do século 19 com a comunidade síria, que a influenciou.

Segundo dados do IBGE, no censo de 1920 havia mais de 50 mil sírio-libaneses no Brasil, sendo quase a metade na capital paulista. Essas milhares de pessoas tiveram, em terras brasileiras, uma trajetória semelhante à da família Kaba. Naim viajou para reencontrar os irmãos mais velhos, que buscavam no exterior uma vida sem as pressões do Império Otomano, conhecido por reprimir a minoria católica.

Foi morar no Belenzinho (zona leste) e trabalhar como caixeiro viajante, a primeira profissão da maioria dos recém-chegados. Ajudado pela rede de comerciantes sírios na 25 de Março, comprou uma loja na região, que então tinha terrenos baratos, desvalorizados pelas inundações constantes causadas pelo rio Tamanduateí.

Em poucos anos, mudou-se para o Alto da Boa Vista, bairro mais valorizado, assim como outros conterrâneos que enriqueceram.

Agora, a parte mais bem-sucedida da comunidade síria se reúne para ajudar os que chegam à cidade. Na próxima quarta-feira (23), representantes de clubes e entidades beneficentes se encontrarão para decidir como colocar o apoio em prática. A ideia é fazer eventos para arrecadar dinheiro e doar produtos, como próteses.

A imagem do menino Aylan Kurdi, de três anos, encontrado morto em uma praia da Turquia, tocou os descendentes de sírios.

"Estávamos empenhados havia quatro anos, mas a foto nos despertou e todo mundo ficou preocupado em fazer alguma coisa. Veio fortalecer o comitê de ajuda", disse o presidente do Club Homs, Antônio José Neaime. Até então, as ações eram mais voltadas a ajudar os que ainda estão na Síria.

Apesar da mesma origem e destino, os imigrantes de ontem e hoje chegaram em momentos diferentes da cidade. Se as primeiras décadas do século 20 favoreciam os estrangeiros pela industrialização crescente, a crise econômica e o custo de vida de São Paulo dificultam sua permanência em 2015.

"Tem casos de pessoas que tinham poder aquisitivo, mas muita gente construiu do zero [quando chegou]. Pegaram uma fase em que era mais simples se inserir na sociedade, em que a indústria nacional estava se desenvolvendo", afirma Juliana Khouri, neta de sírios e libaneses e mestre em estudos árabes.

Eles também tinham políticas criativas, como liquidações e vendas a prazo, que foram peças-chave para a formação da 25 de Março como o centro de comércio que é hoje. Agora, muitos dos que chegam vão para o setor de serviços, como restaurantes.

A vice-presidente da Diretoria de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês, Dulce Abdalla, cita os motivos das viagens e o suporte da família como fatores que diferenciam uma onda migratória da outra. Ela é neta de Taufik Camasmie, um dos primeiros sírios a desembarcar em São Paulo, em 1895.

"Antes, eles vinham aos poucos. A pressão agora é mais violenta e triste."

ASCENSÃO

O contexto histórico permitiu que os sírios recém-chegados enriquecessem rápido. Rizkallah Jorge Tahan pisou aqui em 1895 e foi ser faxineiro em uma loja de artigos de metal. Três anos depois, comprou-a de seu patrão e fundou a primeira metalúrgica paulistana.

Rebatizada de Casa da Bóia, ela continua na rua Florêncio de Abreu, no centro. Quem administra o local, que mantém a mesma fachada, é o neto de Rizkallah, Mário Roberto. Ele diz que o avô foi "fora de série" e recebeu imigrantes em casas que construiu.

Mário conversa com familiaridade sobre o avô que não conheceu e aponta para o retrato do senhor de bigodes grisalhos na parede. "Ele está ali."

As netas de Taufik Camasmie também mostram sua fotografia: um homem idoso, de terno bem cortado. A imagem foi feita na casa dele, construída na esquina entre Paulista e Consolação, com elementos árabes.

Para agradecer o sucesso que o país lhe proporcionou, Taufik deu os nomes de Brasílio e Brasilina a dois de seus filhos. Além disso, ele e outros 21 homens também nascidos em Homs fundaram o clube homônimo, que hoje tem sede na avenida Paulista.

Os sírios também foram responsáveis pela fundação do Hospital Sírio-Libanês e do Hospital do Coração, que começou como Sanatório Sírio de Campos do Jordão. E criaram instituições de auxílio a idosos e crianças. "Era a forma de agradecer ao país", diz Dulce Abdalla, vice-presidente da Diretoria do Sírio-Libanês.

OUTRAS GERAÇÕES

Dedicada ao comércio e às vendas, a primeira geração sírio-libanesa em São Paulo investiu para que seus filhos tivessem uma boa formação. "Queriam que fossem doutores", diz Sérgio Zarh, presidente do conselho deliberativo do Club Homs. Por isso, diz, tantos sobrenomes árabes se destacam na política, na medicina, na advocacia. Ele cita o senador Romeu Tuma (1931-2010) como exemplo.

Muitas praças e ruas paulistanas são nomeadas em homenagem aos sírios, que construíram igrejas ortodoxas para celebrar sua fé cristã.

Hoje, a maioria dos refugiados têm como ponto de apoio as mesquitas, porque são, em grande parte, muçulmanos. Um dos fundadores do Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), Marcelo Haydu, afirma que a maioria dos refugiados acaba morando perto desse lugares, no Brás, no Pari e em Santo Amaro.

"O trabalho feito pelos muçulmanos é fundamental no processo de integração. Vejo resistência das instituições da comunidade, que fazem ações pontuais. O grosso é feito por outras pessoas do mundo árabe."

O sírio Amer Masarani, 44, é uma delas. Ele faz parte da associação Oásis Solidário, grupo de ajuda a refugiados com sede no Brás.

Amer diz que solicitou apoio a instituições da comunidade e não teve resposta. "Não querem assumir o problema que existe na Síria."

Integrantes de entidades sírias evitaram falar sobre a situação política do país nas entrevistas. Em uma das salas do Club Homs, que Bashar al-Assad visitou em 2010, uma foto dele continua pendurada na parede.

"A maioria dos descendentes nunca foi à Síria porque são filhos dos imigrantes", diz Amer.

De Homs, ele chegou ao Brasil em 1996, aos 26 anos. Hoje tem uma loja de roupas infantis na José Paulino. "A diferença é que vim para o Brasil procurando um futuro, os refugiados vêm procurando uma chance de viver."

Foi depois que uma bomba caiu a metros de sua filha quando ela voltava da escola que Annas Najjar e sua família decidiram deixar Damasco. A menina não se machucou, conta o pai, mas ficou assustada.

As noites na capital síria eram insones enquanto mísseis destruíam o bairro vizinho. Apesar de ainda estar desempregado, Annas, que é eletricista, diz ser feliz no Brasil. "Dormimos 'calmo'."

Sua mulher não participa da entrevista e, na hora da foto, olha para o marido pedindo permissão. Muçulmanos podem ter uma relação hierárquica com as mulheres, que muitas vezes usam véu. Diferentemente da primeira onda de sírios, muitos sofrem preconceito pela religião.

Marcelo Haydu diz que as mulheres são chamadas de "esposas do Bin-Laden" e "terroristas" nas ruas. "O recorte religioso do preconceito é muito claro, porque, em geral, o brasileiro vincula a imagem dos árabes a contribuições para o país."

Com seu trabalho, Amer e outros sírios que chegaram nas últimas décadas ajudam a formar uma nova geração de árabes brasileiros.

Os irmãos sírios Maiar, 11, e Manar Darweesh, 14, dizem se sentir como brasileiros. Há oito anos na cidade, querem voltar à Síria, mas não definitivamente. "Quero retornar ao Brasil", diz Manar, dividido sobre o futuro: engenheiro, astrônomo ou arquiteto? O caçula decidiu: quer ser médico. "Como um super-herói."

Eles acham que a TV exagera sobre o país, que "não está tão ruim".

Apesar da diferença de idade, compartilham com os descendentes paulistanos a imagem de uma Síria que não era só escombros.

(COLABORARAM AMANDA MASSUELA, RAFAEL GREGORIO E RAFAEL BALAGO)

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