Ex-doméstica assiste a 'Que Horas Ela Volta' e diz que preconceito é real

Doméstica durante 24 anos, Maria Lima, 65, cobre o rosto com as mãos quando Val –empregada interpretada por Regina Casé no filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert– leva para a festa de aniversário da patroa o conjunto de xícaras que deu de presente a ela.

Na sessão, que a sãopaulo acompanha, Maria aperta os olhos e repete "tragédia, tragédia". A cena termina com Val sendo empurrada pela patroa de volta para a cozinha. "Val, pelo amor de Deus, essa não. Eu disse que essa a gente vai levar para o Guarujá."

A apreensão volta nos momentos em que Jéssica (Camila Márdila), filha de Val que vai fazer vestibular em São Paulo e fica na casa da família, desafia a hierarquia ao almoçar com o patrão e dormir no quarto de hóspedes.

Além da própria experiência, Maria traz em suas reações o mandato como presidente do sindicato da categoria na cidade. Ela diz que situações como as do filme não são raras, mas que hoje as domésticas estão empenhadas em cobrar seus direitos.

Rodrigo Dionisio/Folhapress
SPSP SAO PAULO SP - Maria Lima, presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo, após assistir o filme Que Horas Ela Volta?, na sede da instituição, na noite de hoje (29/09). Foto: Rodrigo Dionisio/Folhapress
Maria Lima, presidente do Sindicato das Empregadas Domésticas de São Paulo

são paulo - "Que Horas Ela Volta?" é factível?

Maria Lima - Sim, e a história é velha porque todas nós somos imigrantes, viemos do Nordeste para São Paulo à procura de uma vida melhor. É uma história já antiga, conhecida e reconhecida mundialmente. E achei muito bom. Tudo é verdade. Ela querer ser mãe do filho da outra, a história de fazer parte da família, o que não é coisa nenhuma. Sempre tem uma relação de desigualdade.

Sua história conversa com a de Val, interpretada por Regina Casé?

Sim. Quando cheguei, eles [os ex-patrões] tinham casado recentemente. Cuidei da filha e aí depois veio outra e fui cuidando. Saí quando uma estava com catorze anos e a outra com dez anos. Tudo o que eu tenho é graças ao trabalho doméstico. No começo a gente trata assim [como se fossem filha], mas depois a gente sabe que é só pelo trabalho, não tem que criar aquela imagem. Você tem respeito, admiração, ajuda educar porque a mãe trabalha e a criança tem que ficar no seu poder. Hoje elas são casadas, uma já tem filho e a gente troca figurinhas, vai visitar. Tenho um bom convívio, mas eles lá e eu aqui. Continuo sendo a Maria, mas a Maria que foi a empregada deles, não me considero da família, nunca. Porque onde você trabalha e recebe um salário não pode ser considerada da família. Você está lá para prestar um trabalho, tem que ter respeito, educação, ser uma boa profissional naquilo que você vai fazer, isso é o importante.

Quais são as maiores reclamações das empregadas ao sindicato?

São sempre as mesmas: "você não pode comer isso porque é do meu filho". "Vai na feira? Compra tal coisa para o meu filho." Elas contam e é realidade. Se sentem mal. Muitas delas estão pedindo as contas, porque querem fazer faculdade, o que não acontecia na minha época.

As empregadas domésticas hoje questionam mais o patrão?

Algumas. Elas procuram fazer interrogações, não aceitam qualquer coisa. Patrão não faz delas mais gato e sapato porque são ativas, pelo menos as que vão ao sindicato. "Ele quer que eu durma no emprego, mas não vou mais dormir porque tenho minha casa." "Quero meu horário de trabalho honesto, meu salário digno." Elas questionam tudo. Agora, com a PEC das domésticas [proposta de emenda constitucional aprovada em 2013], muitas vão com a patroa para se atualizar. Melhorou bastante.

Os empregadores estão mais abertos a discutir essas questões?

Estão entendendo, mas alguns relutam. Acham que a empregada tem que estar 24 horas a mercê e não é por aí. Hoje a gente tem a liberdade de ir e vir e tem o direito de dizer o que não quer. Sou um ser humano, tenho que ter minhas horas de descanso. Todo mundo faz luta pelos seus direitos, mas nossa categoria é tímida para ir para rua. Se acontecesse um movimento desse ia parar o país, porque todos dependem de uma pessoa em casa. Somos 7, 8 milhões. Você já pensou o caos? Quem fica para lavar, passar?

E a desigualdade no Brasil?

Melhorou um pouco. Esse governo foi o que mais trabalhou pela visão total dos trabalhadores, apesar dos pesares. Os nordestinos viajaram mais, comeram melhor, compraram seu carro, sua casa, puderam comprar seus supérfluos. Tudo tem seu tempo, sua hora. No passado a gente não tinha e hoje vamos usufruir, por que não?

O que ainda falta?

Precisa mais avanço da nossa parte. Oportunidade tem, mas precisamos avançar mais na igualdade. Digamos, aqui [no cinema] tem um monte de gente, quantas trabalhadores domésticas estão aqui presentes? Eu. Entendeu? Porque a essa hora da tarde, está todo mundo saindo do trabalho. Melhorou um pouco porque, em outras épocas, não se tinha a visibilidade que tem hoje. Minhas sobrinhas e os filhos de outras companheiras estão fazendo faculdade.

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