'Para lei, palavra da mulher não basta', diz feminista sobre projeto de Cunha

"As teimosas", lê-se nos retalhos que formam a capa do sofá. "El machismo mata" está estampado em um quadro. Na sala, a bandeira de tecidos tem a palavra "autonomia" costurada. Não é difícil perceber que o lugar é sede de uma organização feminista.

Fundada em 1963, a SOF (Sempreviva Organização Feminista) é das entidades paulistanas que há mais tempo discute os direitos da mulher.

Focada até o início dos anos 1990 na saúde feminina, passou então a ampliar o debate com bandeiras como a descriminalização do aborto.

Para a coordenadora-geral da SOF, Nalu Faria, 56, o projeto de lei nº 5069, do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é um retrocesso ante conquistas feitas nos últimos anos.

Ela considera que a necessidade do exame de corpo de delito, que o projeto impõe a vítimas de estupro, deslegitima a palavra da mulher. Além disso, teme que ONGs que defendem a interrupção da gravidez possam ser criminalizadas.

O que achou do projeto de lei?

Ele busca reverter o avanço na legislação e nas práticas de atendimento, que foram fruto de muito esforço. Quando a gente conseguiu o reconhecimento da palavra das mulheres, teve um significado grande. No tema da violência sexual, sempre vivemos esse drama: a palavra das mulheres nunca é válida. Ela sempre deve provar que está falando a verdade, não é o acusado que deve provar que é inocente. A gente tem conseguido que a palavra seja o suficiente para haver um atendimento emergencial, para prevenção da gravidez, de DSTs.

E o exame de corpo de delito?

O exame está vinculado ao que falei, de que a palavra não basta. O que temos visto, no aspecto judicial, é um atendimento relapso. Encontra-se sêmen e isso nem sempre é levado em conta. Muitas mulheres, quando relatam situações de estupro, dizem que a primeira coisa que querem fazer é se lavar. Não se está considerando o que significa para as mulheres a vivência dessa situação.

Quais seriam os outros efeitos?

Quando você mexe em uma questão específica, o impacto não é só ali. Dizer que a voz das mulheres não vale, não é só para o atendimento de estupro. E deixa os profissionais de saúde em uma posição difícil. Quando a mulher é estuprada, a pessoa corre o risco de, ao dar assistência, ser considerada criminosa. Há impacto sobre quem convive com as mulheres, as famílias, por exemplo.

A parte do texto que pune o anúncio e instrução sobre meios abortivos pode atingir as organizações feministas?

Com certeza. Todo mundo sabe que o aborto existe e que as mulheres recorrem a ele em situações de gravidez indesejada. Se não, não existiria o número de abortos que têm neste país, que é quase de um milhão por ano. Vai tendo uma tentativa de fechar o cerco e buscar quem está ajudando, quem está informando. Existe uma tentativa há anos de criminalizar as organizações de mulheres que fazem um debate sobre o aborto. O que vai acontecer? Se o projeto for aprovado, vão ter um respaldo legal para fazerem isso. E vão ampliandoo os elementos que chamam de apologia, que é a palestra, a informação, a entrevista.

O aborto deve ser descriminalizado?

Entendemos que a maternidade não é um destino, mas uma decisão. A maternidade envolve uma série de conflitos que vão além da pergunta de querer ou não um filho. Se considero essas ambiguidades, questões e contradições, entendo que o aborto deve ser descriminalizado e legalizado. As mulheres não fazem aborto por irresponsabilidade. Uma feminista falou que a mulher que aborta uma gravidez indesejada é extremamente responsável. Porque se perguntou se tinha condições de ser mãe.

E a possibilidade da adoção, defendida por quem é contrário à legalização do aborto?

Essa ideia de que a gente tem que convencer uma mulher em uma gravidez indesejada de que ela tem que levar a gravidez a termo para dar para adoção não passa pela minha cabeça. Não estamos falando de abortos de crianças, estamos falando de abortos de embriões, e para gente isso é diferente. [Esse argumento] passa muito por cima de vida da mulher, porque ela é vista apenas como um recipiente que abriga um embrião, que vai virar um feto e depois uma criança. Não estão considerando o que vão ser os sentimentos dela ao dar para adoção. Ela vai parir uma criança, e não é que não tenha condições de levar a termo uma gravidez, ela não tem condições de presenciar a vida de uma pessoa que deixou vir ao mundo. Esse tipo de sugestão é um total desrespeito à vida das mulheres.

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Os protestos contra Eduardo Cunha em São Paulo

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