'Combate ao crack virou jogo político', diz cantora que é ex-moradora de rua

Ao entrar na casa de Esmeralda Ortiz, em Pirituba, na zona norte paulistana, já se vê um quadro com o sorriso dela pendurado acima da porta. Nas paredes, prateleiras de livros —como "Terras do Sem-Fim", de Jorge Amado— dividem espaço com um violão.

Fica difícil imaginar que, por dez anos, ela viveu entre as ruas do centro de São Paulo e a extinta Febem (hoje, Fundação Casa). Cheirou cola, fumou crack, roubou, sofreu abuso sexual. Foi detida mais de 50 vezes. Mas sempre escrevia, gostava de criar sambas.

Destas e de outras composições nasceu o álbum "Guerreira", lançado na última quinta (3) no Sesc Pompeia. Há 18 anos "limpa", Esmeralda formou-se em jornalismo, escreveu dois livros e, agora, realiza seu sonho: cantar.

Alexandre Nunis/Divulgação
Ex-moradora de rua, Esmeralda Ortiz lança CD com suas composições
Ex-moradora de rua, Esmeralda Ortiz lança CD com suas composições

sãopaulo - Qual é a sua história com o samba?
Esmeralda - Com dez anos, quando eu estava na rua, tive contato com a música. O Toniquinho Batuqueiro [compositor] ia lá no Anhangabaú e tirava a cola de todo mundo. Ele parava com um caminhão e entregava instrumentos, ensinava a gente a tocar. A partir daí montamos nossa bandinha e eu cantava. Minha primeira música foi "Criança Esperança", que era uma homenagem ao ECA. Mas, com o crack, tudo isso se desfez.

As composições do CD são suas?
Várias são, mas tem Pixinguinha, Candeia, Katia Pretel [do Samba da Vela], Luizinho Mixaria, que mora na rua... Metade dos compositores faz parte de alguma comunidade da cidade.

A Esmeralda de hoje é mais escritora, cantora ou mãe?
Decidi fazer da minha vida um bolo e fatiar em partes. Quando saí da rua, não podia ir direto para o samba, ia dar merda. Aí pensei: Dona Ivone Lara é formada, Martinho da Vila também, preciso estudar. Escrevi meu primeiro livro com apoio do Gilberto Dimenstein, tive meu filho, terminei a faculdade de jornalismo. Só depois me senti realmente preparada para a música.

O que acha das ações da prefeitura para o combate ao crack?
Vou falar com uma experiência pessoal. Meu irmão morou na rua por 32 anos. Ele ficava entre o viaduto Alcântara Machado e a Sé. De tanto ficar por ali, o pessoal arrumou um trabalho. Agora, ele acabou de alugar a primeira casa da vida dele: um quarto e uma cozinha. E ainda levou uma menina que morava na rua e um bebê. Ele foi comigo fazer feira e até chorou. Você tem noção do que é isso? Acho legal a prefeitura dar trabalho. Claro que nem todo mundo usará de forma coerente, mas quem realmente quer e necessita, vai.

O que falta para acabar com o crack em São Paulo?
Interesse, isso virou jogo de política. Tem que trabalhar a pessoa, a família, e dar condições. Hoje, só se aborda essa questão porque ela atingiu a classe média. Quando eram só os pretinhos fumando pedra, ninguém queria saber. Enquanto o crack for trabalhado com discriminação e indiferença, enquanto for campanha eleitoral, não vai mudar. Eu fui uma sortuda, e não fui achada pela mídia. Fui resgatada por alguém que me olhou como ser humano. Tem que ter alguém no poder que trabalhe junto com a sociedade civil.

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