'O lixo me ensinou muita coisa', diz catador que é referência em logística

Sergio Bispo, 59, vale muito mais do que pesa. No ano passado, ao volante de sua Kombi modelo 1980, motor a diesel e lataria grafitada, Bispo rodou os quatro cantos da cidade de São Paulo e coletou um total de 265 toneladas de material reciclável, ou seja, quase 730 kg por dia.

Natural da Bahia, Bispo chegou em São Paulo em 1989. Criado num lixão de Salvador, trabalhou desde a infância como catador de lixo. Hoje, à frente do projeto Kombosa Seletiva, possui algumas dezenas de clientes para os quais presta serviços de coleta seletiva, nos quais se incluem indústrias de material ortopédico, clientes particulares e até restaurantes como o Mestiço, badalado endereço da região central da cidade.

Nos últimos quatro anos, o baiano também se acostumou a dar palestras para marcas como Pão de Açúcar, Boticário e Red Bull, além de ter viajado para países como França, Dinamarca e Holanda para mostrar sua experiência na reciclagem. Apesar de tudo, não venha chamá-lo de palestrante, ativista ou empresário. "Eu sou catador", diz.

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Você pode nos explicar o que é a Kombosa Seletiva?

No final das contas, é uma marca. É um jeito de atrair clientes e organizar a coleta do material reciclável. Com o tempo, passei a perceber que precisava me organizar, bolar um procedimento para ganhar escala na minha coleta. Troquei a carroça que puxava pela Kombi, criei uma agenda com horários para coletar os materiais, e passei a tratar os produtores de lixo como clientes. Faço uma gestão do lixo mesmo. Explico o caminho que aquele material tomará, mostro que não vai ser jogado em aterros e, no final do mês, envio uma planilha para eles, mostrando quantos quilos eles conseguiram retirar da cadeia produtiva do lixo com este serviço. Tento ensinar para os outros catadores que eles podem ser mais eficientes e ganharem mais dinheiro trabalhando dessa maneira.

Dá para dizer que você se tornou um empresário do lixo então?

Não, eu recolho esse material, mas tudo ainda passa pela cooperativa (Bispo se refere à Cooper Glicério, da qual foi presidente de 2006 a 2014). Até tive que me cadastrar como microempreendedor para poder aproveitar a Lei 14.973 (lei municipal que dispõe sobre a coleta seletiva dos grandes geradores de lixo da cidade), mas eu não quero pensar só em mim, eu quero montar uma empresa social, mais justa. O negócio do lixo em São Paulo é muito sujo. Ganha-se muito dinheiro, mas não existe nenhuma preocupação ambiental ou social. Eu sou só um catador organizado.

De onde veio a ideia para essa profissionalização do catador?

A gente vai aprendendo as coisas na prática, na vida mesmo. Quando dei minhas primeiras palestras e explicava o que estava fazendo, nunca tinha ouvido a palavra logística. Sou curioso, vou perguntando, e aí me explicaram. Agora sou eu que uso essa palavra.

Qual você acha que foi o seu maior aprendizado?

O lixo me ensinou muita coisa. Fui aprender a ler adulto, nos jornais que recolhia na rua. Meus filhos também me ajudaram, porque era na época em que eles começaram a frequentar a escola. Mas acho que o maior de todos foi aprender a dar amor e carinho para a minha família. Eu nasci em um lixão, nunca tive uma referência familiar. Comecei a beber sobras de vinho que achava no aterro aos cinco anos de idade. Só fui conhecer pasta de dentes quando cheguei em São Paulo, já adulto. Hoje, crio seis filhos, três biológicos e três de criação. Os dois mais velhos já fazem faculdade, um educação física e o outro moda. No final das contas, o sofrimento e a necessidade podem ser grandes inspirações.

Qual a principal mensagem que você procura passar em suas palestras?

Geralmente quando vou para essas palestras eles servem mesas enormes de comida. Eu costumava comer maçãs que achava no lixão. Acho que minha principal mensagem é a busca por uma economia mais justa, por um mundo mais justo. Não acho que eu ou você vamos conseguir ver essa mudança, mas quem sabe os nossos bisnetos não terão essa sorte?

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