Após foto polêmica, babás em SP dizem ser normal empurrar carrinho

Houve quem ressaltasse os resquícios do Brasil escravista e resumisse àquela cena o perfil do público das manifestações contra o governo Dilma Rousseff. E teve quem considerasse a imagem uma prova de que o preconceito está nos olhos de quem vê, acrescentando que o trabalho honesto dignifica o ser humano.

A polêmica foi causada pela fotografia que circulou no domingo (13), na qual um casal de brancos, com um cachorrinho na coleira, aparece indo à passeata no Rio acompanhado de uma babá negra, que, uniformizada, empurra o carrinho dos filhos dos empregadores.

Nas redes sociais, a cena foi comparada por apoiadores do governo a uma aquarela de Debret (1768-1848), o artista francês que retratou cenas de escravidão no Brasil do século 19.

Os retratados se pronunciaram: afirmaram que não havia constrangimento ou irregularidades naquela relação profissional.

"Ela não deve ser tratada como vítima. Aquela é a forma dela [a babá da foto] ganhar seu salário de forma justa", diz Nathalie Rosário, do Sindoméstica, órgão representativo da categoria na Grande São Paulo.

"E babá não é coisa de gente rica", continua ela. "Há mães de classe média que precisam delas." Segundo a entidade, entre as milhares de babás, há 800 sindicalizadas e o piso salarial varia de R$ 1.200 a R$ 1.500.

Formada em enfermagem e babá especializada em bebês até os seis meses há 15 anos, Márcia Regina, 53, era uma das que, vestidas de branco, aproveitou a terça (15) ensolarada para levar bebês e crianças para passear e brincar da praça Pereira Coutinho, na Vila Nova Conceição, zona sul paulistana.

"Uma vez uma vendedora falou para mim: 'O que esperar de uma pessoa que limpa a bunda dos filhos dos outros?'. Respondi: 'Posso até limpar o bumbum do filho dos outros, mas te garanto que ganho o dobro do que você. E faço porque gosto'", conta. Ela diz cobrar de famílias abastadas até R$ 6 mil por mês.

Ao seu lado estava Maria Onilda, 52, que, assim como Márcia, dorme na casa dos empregadores de segunda a sexta e volta para a sua, no Jardim Ângela, zona sul, aos fins de semana.

Onilda vê vantagem em ficar na casa dos patrões. "Pelo trânsito, pela qualidade da condução, pelo risco de andar à noite. Então, termino o trabalho e vou dormir", explica ela, que fatura R$ 4 mil mensais. "Escravidão é quando a pessoa não se valoriza, não briga pelos seus direitos."

"Empurrar um carrinho é um trabalho, você tem de exercê-lo independentemente se aquilo fica bonito na foto ou não", diz Sandra Oliveira, babá há 12 dos seus 31 anos. "A reação [à imagem] foi um exagero. Não achei preconceito nenhum. Ela pode ser negra, empurrar um carrinho e ser bem tratada."

As três mulheres reconhecem, porém, que também há babás e empregadas trabalhando em condições humilhantes –e mencionaram casos próprios e de conhecidas que foram maltratadas e desrespeitadas.

Sandra, por exemplo, não se esquece do dia em que um antigo patrão a repreendeu aos berros. "A pessoa gritou por causa da posição errada de um travesseiro na cama de luxo do bebê. Fiquei assustada. Isso é pior do que empurrar o carrinho estando de branco."

Joao Valadares/CB/D.A Press
13/03/2016- Manifestacao contra Dilma e o PT em Ipanema, Rio de Janeiro. (Foto: Joao Valadares/CB/D.A Press. ) *** APENAS ONLINE*** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Imagem de Claudio Pracownik que foi divulgada nas redes sociais

Para uma babá que trabalha na zona oeste e pediu para não ter o nome revelado, a fotografia do dia 13 resultou em um forte incômodo.

"Se queriam ir, não havia necessidade de levar a babá", afirma ela. "A escravidão só mudou de nome e ficou um pouco mais chique."

Ela cuida de crianças desde a adolescência, quando morava no Nordeste. No primeiro emprego, ganhava R$ 70 por mês. Parou de estudar, virou babá em São Paulo, tornou-se mãe, e, hoje, acumula mais de uma década e meia de experiência.

"Eu queria voltar a estudar, mas não tem como", afirma ela. "Levanto todo dia cedo e só paro às 22h, 23h, quando os meus patrões estão em casa. Quando não estão, vai até meia-noite, uma hora da manhã, pois tem muita coisa para fazer."

Para cumprir a jornada, ela ganha pouco mais R$ 2 mil, sem adicional noturno e hora extra –e parte do salário não consta da carteira de trabalho. "Na ponta do lápis, ia dar muito mais alto."

Da lista de constrangimentos ela cita a inexistência de horário certo para refeições e acusações de comer coisas da geladeira.

"Aí você questiona: 'Mas eles apontam um arma na sua cabeça? Você é obrigada?'." Ela mesma responde: "Quando sabem da sua situação é que se aproveitam mesmo. Não tem escolha. Você precisa".

RAÍZES

Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, domésticas "ainda carregam traços de escravidão e de nosso racismo estrutural". "As babás são similares às empregadas, resvalando com facilidade do universo profissional para o pessoal-hierárquico, no qual sobrevivem as relações perversas."

Naquele momento, acrescenta ele, a babá foi "apagada da paisagem cívica". "É como se a foto declarasse: eis aqui dois manifestantes, dois cidadãos, e, com a criança, a babá, a profissional a quem a família terceiriza os cuidados com a prole. Quando se diz dois cidadãos e a babá, a mulher de branco não é definida como cidadã."

A pesquisadora Liane Maria Braga da Silveira buscou entender as relações entre mães e babás em seu doutorado em antropologia. "Por vezes, a babá 'perfeita' era aquela que conseguia se tornar invisível, levando algumas ao seguinte comentário: 'Estranho, né? Às vezes parece que a gente não tá lá, não existe'."

A imagem vista no último dia 13, lembra a antropóloga, não se restringe ao Rio. "Trata-se de uma cena presente em diversos espaços das cidades brasileiras, e os comentários parecem-me relacionados mais ao suposto trabalho de apagamento social dessa figura criadeira."

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