Faz-tudo do Paço das Artes expõe obras e se compara ao Van Gogh

Na calçada em frente à galeria Raquel Arnaud, em Pinheiros, o pintor Marco Giannotti grita por "João da luuuuz!", levantando os braços antes de perguntar a seu interlocutor como está a situação atual do Paço das Artes, centro cultural com despejo programado para este domingo (27) de sua sede, na Cidade Universitária —o prédio será devolvido ao Instituto Butantan, dono do imóvel.

Em uma semana de fevereiro, durante seu tour habitual pelas galerias da cidade, acompanhado desta vez pela sãopaulo, João ouviu a mesma pergunta incontáveis vezes. "A gente resiste até fim de março, depois a administração vai para uma sala no MIS, não sabemos muito", responde, antes de se despedir e tentar, em vão, lembrar o nome do homem, que define como importante, de pouca idade, artista e professor da USP. "Fiz a iluminação de várias exposições, por isso ele me chama assim. As pessoas me conhecem muito mais do que as conheço."

Funcionário mais antigo do Paço das Artes, com 27 anos de carreira, João Índio, nome artístico pelo qual gosta de ser chamado, é um excêntrico faz-tudo —foi iluminador, produtor, montador, registrou em vídeo muitas mostras e, mais recentemente, apresentava-se na recepção. O paulistano, que praticamente se confunde com a imagem da própria instituição, chegou ao centro cultural ainda na década de 1980. Em busca, inicialmente, de participar de cursos gratuitos, ele acabou trabalhando como modelo vivo antes de preencher uma vaga oficial.

Com 61 anos recém-completados, ele não quer ser visto como "tiozinho". Veste camisas transadas, com listras coloridas ou transparências, e colares que vão do chique ao punk. Completa seu visual um discreto adesivo preto na cabeça raspada —todos os dias, antes de sair de casa, ele substitui o adereço por um novo e cola o antigo nos azulejos do banheiro, compondo um painel quase psicodélico dentro de casa.

ARQUIVO VIVO

Ao longo de todos esses anos no Paço das Artes, Índio já respondeu a diferentes chefias. Passou por Sara Goldman Belz (1987 a 1995), Ricardo Ribenboim (1996 a 1997), Daniela Bousso (1997 a 2007), e acompanha desde o início a gestão de Priscila Arantes, atual diretora artística e curadora.

Conviveu também com uma infinidade de artistas: só na Temporada de Projetos, programa criado em 1996, foram mais de 240 participantes.

Fora da Cidade Universitária, ele é figurinha carimbada nos vernissages. "Eu me envolvo, chego, falo com artistas consagrados", gaba-se. Na maioria das exposições que visita -podem chegar a cinco por semana-, ele dificilmente comparece em dias ordinários, sem coquetéis. "As pessoas me conhecem por boca livre", diz, sem nenhuma vergonha, querendo saber onde está a cerveja da abertura na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

Índio também é artista. Ele realiza colagens desde os anos 1970. Já expôs um trabalho no próprio Paço das Artes, durante a exposição "Ex Libris/Home Page", em 1996 —sua participação, porém, foi em caráter de exceção; como funcionário, ele não pode concorrer a editais.

O Paço ainda exibiu os áudios de uma série de entrevistas com João Índio, depois que as curadoras da 1ª Residência do Grupo de Estudos Curatoriais, Josy Panão, Ananda Carvalho e Christine Mello, perceberam nele uma peça importante do centro cultural. "A gente brinca que ele é uma espécie de arquivo vivo do Paço", diz Priscila Arantes, atual diretora.

Adriano Casanova, proprietário da Casa Nova Arte e Cultura Contemporânea, chegou a conhecer a casa de João, na região do Baixo Augusta. "É uma instalação de arte", conta. "Há colagens pelo apartamento inteiro, banheiro, geladeira." Um dos destaques é a fotografia de Carmen Miranda, posicionada na parede em frente à cama, cheia de adesivos de personagens da Disney. "Por incrível que pareça, comecei a utilizá-los antes de

Nelson Leirner. A diferença é que ele os usa inteiros e eu os recorto para dar ênfase apenas no brilho e na cor", conta Índio, que presenciou a exposição do artista, nome prestigiado da arte contemporânea brasileira, no Paço das Artes em 1994. "Ele é mais velho que eu [de 1932]. Se morrer, posso substituí-lo", brinca.

Neste mês, Índio inaugurou sua primeira individual, no restaurante Villa's Grill, no bairro de Pinheiros. O convite veio do amigo e designer de joias Andree Guittcis, que já havia exposto no local. Com certa relutância, o artista concordou. "Preferia expor em galerias. Em um restaurante não é tão interessante", confessa.

Ele lembra da visita de um curador cubano, de quem não se recorda o nome, que foi ao seu apartamento e ficou surpreso ao conhecer sua produção.

"Como é que ninguém te conhece?", relata ter ouvido. "Ele saiu daqui com a promessa de divulgar meu trabalho na Europa." Sem respostas após seis meses, Índio descobriu que o curador havia morrido. "É carmático, né?", lamenta. "Vou ser igual ao Van Gogh. Precisarei morrer para me tornar famoso."

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