'O programador da TV é a publicidade', diz Pedro Cardoso, em cartaz com duas peças

Já faz um ano que Pedro Cardoso, 54, não veste os idiossincráticos trajes de Agostinho Carrara, o genro trambiqueiro da série "A Grande Família".

"É duro admitir, mas sinto falta, sim. Eu gostava não só de fazer o personagem, mas do dinheiro que eu ganhava e do fato de ele vir de algo inteligente", diz.

Fora da Rede Globo desde junho, o carioca parece ainda mais afiado. Em uma hora de conversa com a sãopaulo no restaurante de um hotel na Bela Vista, aborda com fluência da política ao feminismo, da Olimpíada à dramaturgia de Dias Gomes.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Sao Paulo, SP, Brasil. Data 22-07-2015. O Homem Primitivo. Ator Pedro Cardoso. Foto Lenise Pinheiro/Folhapress
Graziella Moretto e Pedro Cardoso na peça "O Homem Primitivo", no Teatro Shopping Frei Caneca

Cardoso aparece em duas novas montagens a partir desta semana, ambas no Teatro Shopping Frei Caneca, na região central.

Uma é a elogiada "O Homem Primitivo", mescla de drama e comédia sobre questões de gênero que escreveu, dirige e interpreta com a mulher, a atriz Graziella Moretto, 44.

"Estamos no começo de uma compreensão da terrível opressão do masculino", afirma Cardoso.

A perspectiva política é compartilhada por Graziella, que louva a ascensão de uma nova onda feminista, mas alerta: "O trabalho está longe de ser feito, há camadas que ainda não são nem acessadas no debate. Não se pode falar em gênero sem falar em classe", exemplifica.

Já "O Autofalante" parte de um homem que perde a sanidade pois não consegue se fazer ouvir. "Nesse momento de perplexidade com a desordem política, creio que todos estejamos nos sentindo sem voz", diz Cardoso sobre a atualidade do texto que criou nos anos 1990.

Ambos negam reticência em abordar temas duros com humor. "Há equívoco quando se associa a comédia a assuntos leves", defende ele. "Ser comediante não é sinônimo de ter mau gosto", completa Graziella.

Cardoso, aliás, diz que vem a São Paulo só "por dinheiro", mas revela, ao final, um ponto fraco na metrópole: "A casa do meu sogro; lá me torno o verdadeiro Agostinho".

Leia mais das conversas com Cardoso e Graziella a seguir.

Teatro Shopping Frei Caneca. R. Frei Caneca, 569, 7º andar, Consolação, tel. 3472-2229. O Autofalante, ter. a qui.: 21h. Estreia: 6/7. Até 25/8. Ingr.: R$ 50 p/ 4003-1212 ou ingressorapido.com.br. O Homem Primitivo, sex. e sáb.: 21h; dom.: 19h. Até 28/8. Ingr.: R$ 70 p/ 4003-1212 ou ingressorapido.com.br.

*

sãopaulo - "O Homem Primitivo" propõe debate sobre sexo e gênero. O saldo atual é positivo ou negativo?
Pedro Cardoso - Acho que estamos no começo de uma nova compreensão da terrível opressão que o masculino exerce sobre o feminino. Um dos aspectos mais terríveis é negar-se à mulher valor ao seu pensamento teórico.

Quando uma mulher assume posto de comando, nunca se diz que é pela excelência das qualidades femininas, mas por ter adquirido traços masculinos. A gente tem que aprender a reconhecer e dar o valor àquilo que é feminino em nós. Isso é algo que Graziella trouxe para minha vida e para nosso trabalho.

O quanto passa pela mente de você e da Graziella, enquanto autores e atores, a preocupação com a abordagem cômica de temas sérios?
Penso que há um certo equívoco quando se associa a comédia a assuntos leves e o drama a assuntos pesados. Esse equívoco se origina na própria divisão entre comédia e drama, como se no drama não houvesse comédia, e na comédia não houvesse drama. Acredito que a expressão artística é artística porque é integral. Não há conflito em tratar um assunto sério deixando que a comicidade explicite os conteúdos inconscientes.

"O Autofalante" aborda o tema do duplo. De onde veio a ideia e como ela é explorada no palco?
É uma peça que escrevi nos anos 1990, mas para minha surpresa se mostrou atual. Nesse momento em que a população está assustada e perplexa com a desordem política, acredito que todos estejamos nos sentindo sem voz.

Originalmente trata-se do drama de um homem que perde a sanidade porque não consegue se fazer ouvir. Na primeira fala ele diz: "televisão não tem orelha". A humanidade criou tecnologias que priorizam a emissão do sinal. Isso diz muito a respeito da psicologia humana. O homem é pouco permeável à realidade, prefere impor sua visão dela, e isso termina por favorecer o poder dominante, que é o econômico. O dinheiro dita a mensagem que vai circular.

O surgimento da internet altera de alguma forma esse equilíbrio?
Mexe, sim, de maneira contundente. Agora, todo mundo fala. Mas isso não quer dizer que alguém ouça. A internet não investiga e não oferece caminho às razões pelas quais a humanidade não ouve.

Além disso, sua aparente liberdade esconde um enorme interesse comercial. A humanidade inteira produz conteúdo para Google, Facebook, Instagram. A veiculação daquela expressão tem como resultado o enriquecimento de uma empresa. E toda vez que há um negócio, certamente há um cerceamento da liberdade. Mas é uma válvula de escape, ao menos.

Você ainda é ator da Globo?
Meu contrato foi "descontinuado" agora em junho. Um fato jurídico: eles entendendo que nós não tínhamos relação trabalhista, apenas contratos, e que tais contratos foram cumpridos até o fim por ambas as partes. Eu trabalhei durante 35 anos na TV Globo e gravava "A Grande Família" quatro dias por semana. Sei o quanto tive que construir minha sensibilidade para ir todo dia bem disposto para a arte, não para o comércio da arte.

E como foi esse primeiro ano fora?
Estou pensando numa série de televisão chamada "Área de Serviço", sobre as relações domésticas. A grande fronteira da justiça social é o trabalho doméstico. Quando a mãe passa e lava a roupa de um filho, ele não tem compreensão de que aquilo é um trabalho. Nessa devoção maternal reside a alienação do homem. Se não a enfrentarmos, não vamos produzir justiça social.

Em última análise, trata-se de remunerar a maternidade. Quando uma mulher tem um filho, ela gastar 80% do tempo para tomar conta, e o pai só não o faz porque está protegido pela estrutura sexista, pelo trabalho fora de casa.

E tenho pensado um projeto de televisão, por minha conta. Era uma novela, agora é uma ideia de resgatar o espírito —talvez até os textos— do Dias Gomes. Ele tinha um estilo muito próprio e falava do Brasil com uma propriedade que não vejo mais na televisão brasileira, que está excessivamente fantasiosa.

Essa fantasia excessiva vem de dificuldade em entender a realidade?
Não, acho que tem a ver com o fato de que o verdadeiro programador da TV não é nem o administradores nem o artistas, mas o mercado publicitário. E a publicidade tornou-se por excelência a linguagem da falsidade. Daí a televisão ser terreno fértil para a fantasia desvinculada do real, que é diferente de uma como a do Dias Gomes, que nasce do real e o poetiza, mitifica e simboliza.

Como você vê a saída da presidente afastada e o governo interino?
Embora o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) tenha de fato ocorrido dentro de uma legalidade, eu considero o afastamento dela um golpe político. Não acredito nem por um segundo na honestidade das pessoas que conduziram esse processo. Pela biografia dos envolvidos. Esse Congresso é de tal maneira desautorizado pela corrupção que não tem autoridade moral para afastar alguém eleito pela maioria do povo.

Parênteses: temos de lembrar que certos crimes já foram legais. A própria escravidão. Nem toda legalidade é moral, há legalidades imorais.

E qual sua expectativa sobre as Olimpíadas?
Os atletas merecem todo nosso carinho e respeito. Por essa razão nós devemos saudar a Olimpíada.

Considero que a Copa do Mundo e a Olimpíada foram um deslumbramento do PT com relação ao país. Você não pode dar uma festa quando sua casa é uma baderna. E o Brasil é uma baderna. Não consegue ter escola, hospital. Não conseguimos controlar uma epidemia de dengue e vamos convidar o mundo para vir aqui dar uma festa com a desculpa de que isso nos trará dinheiro? Ambas, Copa e Olimpíada, foram promovidas para a classe política ganhar dinheiro roubando.

Acho que vou ser preso, cara. (risos)

Você tem algum destino preferido em São Paulo? Um restaurante, um teatro, um bar?
O que me traz a São Paulo é dinheiro. Meu destino preferido aqui é a casa do meu sogro, no Campo Belo. Lá eu me torno o verdadeiro Agostinho.

E você sente saudades do Agostinho?
Sinto. É duro admitir, mas eu sinto. Eu gostava imensamente não só de fazer o personagem, mas do dinheiro que eu ganhava, e do fato de esse dinheiro ter vindo de algo inteligente. Ganhar bem e fazer uma coisa boa é o "momento Paramount" da vida de um ator. Então tenho saudades d'A Grande Família como um todo. Mas acho que ela cumpriu sua missão.

Falta alguém com quem trabalhar?
Eu gostaria de ter contracenado com a Marília Pêra (1943-2015), achava ela uma artista extraordinária. Mas tenho alguns privilégios, não posso me queixar. Um deles é trabalhar com a Graziella. Outro, que tive três ou quatro oportunidades de contracenar com a Fernanda Montenegro. É como jogar pelada com o Pelé, receber passe dele.

Agora tenho curiosidade de trabalhar com a geração nova. "Porta dos Fundos", o Gregorio Duvivier, o próprio Adnet. Eu via o Caetano Veloso tocando com músicos jovens e achava aquilo tão bonito. Tenho muito a aprender com a geração mais nova. Com você.

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