Com judoca de 91 anos, escola em SP vira fábrica de medalhistas olímpicos

Biscoitos, chá e cafezinho quente recebem quem chega ao quintal da casa térrea no bairro da Vila Sônia, zona oeste de São Paulo. A mesa, do lado de fora, deixa claro que ali todos são bem-vindos, e a conversa, entre um gole e outro para esquentar a noite fria, é quase um ritual.

Quem embarca no clima de vizinhança do interior quase não percebe o que acontece lá no fundo. Uma pequena escada dá acesso a um centro emblemático do esporte brasileiro. Dali saem golpes precisos, que já renderam ao país um ouro, uma prata e dois bronzes em Jogos Olímpicos.

A Associação Vila Sônia é um templo do judô, até hoje guiado pelo atencioso e rigoroso sensei Massao Shinohara. Aos 91 anos, ele ainda assiste às aulas sentado em sua cadeira de rodas e cuida para que a academia continue a ensinar "o judô verdadeiro", como faz há mais de 60 anos.
"Aqui mantemos a origem do esporte, que é educação. A criança não tem que ser campeã de competições, ela tem que ser campeã do judô", diz Shinohara.

O sensei começou a ensinar judô em Embu das Artes. Aos 15 anos, ele só havia tido três aulas quando seu mestre foi para o Japão lutar na Segunda Guerra.

Shinohara não desistiu, passou a estudar o esporte. Encontrou Ryuzo Ogawa, um dos responsáveis pela difusão da modalidade no país, e começou a ter aulas em sua academia. De lá, voltava para o Embu para transmitir o que aprendia.

Em 1956, o então caminhoneiro foi morar na Vila Sônia. Durante o dia e a madrugada, transportava legumes. À noite, ensinava judô. A academia passou por quatro endereços diferentes até parar nos fundos do quintal da casa de Shinohara, quando os próprios alunos, em sistema de mutirão, ajudaram a erguer o dojo [área de luta].

A superfície usada nos treinos já passou por transformações drásticas. Foi um chão forrado com pó de serragem, teve tatame de palha, revestido de lona de caminhão, de vinil, feito com raspas de pneus cobertas com lona e, por fim, de aglomerado de borracha, o mais novo e moderno.

Luiz, o único filho do sensei e de sua mulher Inês —eles têm mais duas filhas— se lembra bem da infância ligada ao judô. Aos 5 anos, já era aluno. Quando tinha 9, a academia foi para o quintal de casa.

"Me lembro que os treinos eram diários e só havia um horário, à noite, das 19h às 21h. Como no treino não havia alunos com menos de 15 anos, eu acabava cochilando pois morria de sono nesse horário. O que me estimulava ir ao treino era o dono do bar ao lado da academia, também praticante. Quando acabava a aula, sempre me dava um picolé", diz.

Ele não teve escolha. Seu pai queria que o único filho homem fosse um judoca de destaque e não o poupava. "Eu me sentia até injustiçado. Houve muitos momentos na minha infância em que eu queria muito parar de praticar judô", relembra Luiz.

Shinohara admite ter sido muito rigoroso e não esconde o orgulho ao falar da carreira do filho, à frente da seleção masculina e um dos treinadores mais respeitados do país.

As filhas Terezinha e Mariana não chegaram a lutar —à época o judô feminino não era difundido no país. Mas receberam algumas lições de defesa pessoal do pai. Hoje, elas ajudam na administração da academia.

A atual estrutura da associação, que tem 140 alunos a partir de 5 anos, começou a ser construída em 1986. Pessoas da comunidade ou ligadas ao judô ajudaram com o pagamento de "cotas". Cerca de dez anos depois, o sensei conseguiu pagar todos, com juros e correção monetária, como gosta de sublinhar.

Àquela época, a academia já possuía duas medalhas olímpicas: o bronze pioneiro de Luis Onmura, em Los Angeles-1984 —o primeiro brasileiro nascido no país a ganhar uma medalha no judô— e o ouro de Aurélio Miguel, em Seul-1988.

Os dois ainda fazem treinos na Vila Sônia. "A academia sempre procurou preservar a forma japonesa do judô. É um lugar importante para a história do esporte nacional", afirma Miguel, que conquistou ainda uma medalha de bronze em Atlanta-1996.

Por último, Carlos Honorato faturou a prata em Sidney-2000.

Os Jogos do Rio também terão um representante da academia dos Shinohara. Quando Rafael Buzacarini (categoria até 100 kg) entrar no tatame, a TV na Vila Sônia estará ligada, e o chá, pronto para a celebração.

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