Conheça moradores de São Paulo que fazem dos shoppings uma 'segunda casa'

O relógio marca 6h, e a avenida Giovanni Gronchi assiste aos raios de sol colorirem de laranja o asfalto. Enquanto grande parte dos paulistanos ainda está de pijamas, brigando com o despertador e lidando com as remelas, Jucemar Rebouças já veste paletó, calça social e observa seis monitores na sala de segurança do shopping Morumbi Town, na zona sul da capital.

O baiano de 30 anos é o "Big Brother" do centro comercial –é ele quem supervisiona o circuito fechado de vídeo e controla as 310 câmeras espalhadas pelo lugar, que gravam em 360 graus e em alta definição cada movimento dos clientes. "As pessoas esquecem que sempre estão sendo monitoradas. Se for preciso, conseguimos ler até o que elas digitam no celular", diz.

Tirando um ou outro segurança que verifica as cancelas dos estacionamentos e as entradas principais, há pouco para assistir no início da manhã. O movimento só começa a ficar mais intenso às 8h, quando o supermercado é aberto e os primeiros funcionários e visitantes dão as caras. "Tem cliente que aparece todos os dias. Chega na abertura e fica até a última sessão do cinema."

Se as câmeras estivessem a cerca de 25 quilômetros dali, no Center Norte, provavelmente o segurança acompanharia a chegada da consultora de marketing Henriane Morelli, 47. "Faço tudo no shopping. Cabeleireiro, manicure, reunião com clientes, compras. Até a agência do meu banco fica aqui."

Moradora da zona norte desde que nasceu, Henriane é do tipo que pergunta se você também é da região. "Meu pai me trazia para ver os tapumes da construção do shopping. Quando ficou pronto e tirei minha carteira de motorista, dirigia no estacionamento. O primeiro passeio com meu filho foi aqui também." Inaugurado em 1984, o Center Norte foi construído no terreno em que funcionava um lixão, que foi aterrado, mas ainda tem o seu gás metano monitorado.

Do lixo ao luxo, o centro oferece hoje marcas como Sephora e Swarovski. Mas sem deixar de ser o ponto de encontro das famílias da zona norte, principalmente nos fins de semana, quando é difícil encontrar disponível alguma das 7.000 vagas de estacionamento -o que deixa os corredores entulhados de carrinhos de bebê e de crianças que aproveitam o piso liso e regular para escorregar sobre seus tênis com rodinhas. "É quando venho com meu filho. Tomamos um sorvetinho e passamos na livraria e no cinema."

Nesse mesmo instante e vestindo uma camiseta do filme "Blade Runner", William Costa Silva, 46, aproveita as poucas filas da manhã para a sua peregrinação semanal: comprar ingresso para a próxima sessão no Frei Caneca. Desde que o shopping foi aberto, em 2001, ele vai todas as semanas ao cinema. "Hoje com menos frequência. Mesmo assim, apareço duas ou três vezes por semana." A presença constante o transformou, literalmente, em cinéfilo de carteirinha. Entre 2005 e 2007, Silva recebeu um "passe livre" do cinema para não pagar entradas.

"O Frei Caneca tem um lado 'cult' que nenhum outro shopping tem. O Espaço Itaú exibe filmes europeus e de arte. Fora isso, tem dois teatros e uma escola de atores", enumera o cliente fiel, que até 2010 costumava guardar cada ingressos dos longas que via no lugar. A papelada ocupa hoje três caixas, com lembranças de "O Pianista", "Diários de Motocicleta", "Constantine"... "Grande parte assisti na pré-estreia. Mas parei. Agora registro tudo no Instagram."

HORA DO ALMOÇO

Enquanto Silva se entretêm em frente à telona, a hora do almoço transforma todos os shoppings da capital em formigueiros. Praças de alimentação criam filas intermináveis, cafés não têm mesas disponíveis e quiosques de sorvete lembram estações de metrô em horário de pico. A confusão faz pouca gente perceber que um homem de camisa branca, colete preto e gravata borboleta entra no Pátio Paulista, na Bela Vista.

O engraxate Ronaldo Bercee, 45, começa a trabalhar pontualmente às 13h, momento em que estudantes e trabalhadores tomam todos os corredores. Em poucos minutos, um cliente engravatado senta à sua frente. O funcionário examina a cor do sapato, protege as meias do freguês com um plástico, tira o pó do couro com a escova e remove os cadarços. Em seguida, passa a graxa duas vezes. "Sapato é como mulher. Gosta de um bom cuidado, hidratação e maquiagem", fala, sorrindo para o homem, que paga R$ 20 pelo serviço e estende R$ 2 como caixinha.

Bercee é ainda um guia informal do lugar. Se alguém está perdido, é ele quem indica onde fica a lotérica, o cabeleireiro, o mercado, o podólogo, a gráfica, as máquinas para carregar o celular e outros serviços e restaurantes que tentam fazer com que clientes passem o dia todo dentro do shopping.

Algo inimaginável para a família Collaro. Moradores da Mooca e descendentes de italianos, todos os seus membros e gerações se reúnem aos domingos na casa da bisavó, Cleide, 71, para comer uma massa ou uma "brachola" (bife a rolê). Idas ao shopping só são permitidas depois de os pratos estarem limpos. E apenas as mulheres vão -os homens preferem ficar no sofá, assistindo ao futebol.

Cinco gerações marcam presença semanalmente no Mooca Plaza, na zona leste: da tataravó Soilla, 90, à tataraneta Marcela, 5. "Gosto da piscina de bolinhas", diz a menina, enquanto as mulheres tomam café na Di Cunto, tradicional casa do bairro, aberta em 1935, e que tem uma filial no centro comercial. "É igual à original", dizem ao mesmo tempo mãe e filha, Claudia, 49, e Roberta, 29. "Mas, para comer uns bons cannoli, só mesmo no campo do Juventus, na rua Javari, com o seu Antonio", recomenda Cleide.

Enquanto a família toma o cafezinho, Leonardo Puccoleri, 19, pede um espresso duplo, sem açúcar, e com pedras de gelo a nove quilômetros dali. Ele acende um cigarro no jardim externo do shopping Cidade São Paulo, na avenida Paulista, e tira da mochila um bloquinho e uma caneta. Agradece pelo nome a funcionária que traz a xícara cheia de cafeína. "Obrigado, Claudete."

O músico e estudante de engenharia civil é figurinha carimbada desde a inauguração do local, em 2015. Diariamente, ele escolhe uma mesa para descansar durante a tarde, usar o wi-fi gratuito e compor suas canções. "Tudo vira inspiração. É um espaço de convivência e não apenas de compras." O rapaz fica ali até o pôr do sol, quando volta à Vila Mariana, na zona sul, onde mora.

É justamente quando o casal Alexandre Ogawa, 29, e Priscila Novelleto, 38, chegam ao Tietê Plaza, em Pirituba. Semanalmente, os dois jantam no centro comercial, no Outback ou na hamburgueria Jhonny Rockets. Aos finais de semana, aproveitam para tomar sorvete com os filhos e fazer compras.

Em dezembro de 2015, os produtos adquiridos se transformaram em cupons de uma promoção de Natal. Os dois acabaram sorteados e ganharam um Jeep. "Viramos caçadores de sorteios. Agora participamos de todos. Pouco depois do carro, ganhamos uma pulseira Swarovski de uma marca de atum. Ainda não vencemos mais nada, mas continuamos tentando", conta Ogawa.

Mais para o fim da noite, o casal aproveita para ir ao cinema. Nessa mesma hora, William também assiste a um filme, Henriane e a família Collaro descansam em casa, Leonardo tenta musicar alguma das letras que compôs à tarde e Ronaldo engraxa os últimos sapatos do dia. Nenhum deles se conhece e provavelmente nunca tenham se cruzado ou aparecido nos monitores de Jucemar, que às 6h vai começar a observar mais uma vez as suas câmeras.

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