Onde se morre pela democracia

A sociedade civil põe contra as cordas o regime autoritário da Nicarágua

Manifestantes contrários ao governo do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, fazem barricadas durante protesto em Manágua nesta quarta-feira (30) - Esteban Felix/Associated Press

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Atenção, viúvas e viúvos da ditadura militar, mirem-se no exemplo dos jovens da Nicarágua: eles estão há quase dois meses morrendo pela democracia —evidência definitiva de que ditaduras não são, jamais, a solução para qualquer problema.

O caso da Nicarágua é exemplar por vários motivos. Comecemos por rememorar quem são os jovens na linha de frente da luta, conforme os descreve para El País Sérgio Ramírez, brilhante escritor, Prêmio Cervantes:

"São os netos de uma revolução longínqua ou ausente em sua memória [a revolução sandinista, dos anos 70/80], mas que a levam de todo modo em seus genes, porque aquela se fez também por razões morais, ante o cansaço com uma ditadura familiar que se acreditava dona do país e que, quando se viu ameaçada, não vacilou em recorrer à repressão mais cruel. E ao extermínio".

Ramírez participou da revolução contra a ditadura familiar (a dos Somoza), chegou a ser vice-presidente do governo que se instalou após a queda da dinastia, mas rompeu quando Daniel Ortega, o atual presidente, se converteu em um novo Somoza. Traiu, portanto, uma revolução libertária pela qual deram a vida os pais ou avôs dos jovens que morrem hoje (já são 92 os mortos nos protestos dos últimos 40 dias).

A traição é ainda mais chocante quando se constata que iniciativas da esquerda contra ditaduras de direita ressurgem agora contra autocracias ditas de esquerda, como a de Ortega, mas que não passam de usurpação do poder para desfrute de uma camarilha.

Nesta quarta-feira (30), Dia das Mães na Nicarágua, as Mães de Abril promoveram uma marcha para prestar homenagem a todas as mulheres que perderam seus filhos nos protestos iniciados no dia 18 de abril (daí o nome do grupo). Têm o apoio da igreja, das empresas privadas, da sociedade civil e dos estudantes.

Resume para a Folha o escritor Sérgio Ramírez: será a "mãe de todas as marchas".

Para quem, como eu, cobriu América Latina durante os anos de chumbo, é inevitável ouvir o eco das chamadas Mães da Praça de Maio, que lutaram incansavelmente para que seus filhos, sequestrados pela ditadura argentina do período 76/83, voltassem com vida.

Gritavam "Levaram de nós vivos/Vivos os queremos".

Agora, leio em Confidencial, precioso sítio de notícias nicaraguense, a frase "quero meu filho de volta e vivo", dita por María Elsa Aburto, em alusão a seu filho Kennett Romero Aburto, desaparecido desde o dia 26 de maio, quando foi levado por uma das milícias pró-governo.

Ditadura é assim, nasça de uma revolta popular contra outra ditadura ou a bordo dos tanques para depor um governo constitucional.

No caso da Nicarágua, nem chega a ser uma ditadura plena. Há ainda espaços para a respiração da sociedade civil, tanto que é esta que comanda a revolta que sitiou o regime.

Ortega foi obrigado a aceitar um diálogo, intermediado pela igreja, no qual se discutem alguns temas pontuais (dentre os quais a violência oficial contra os manifestantes), mas se negocia também o retorno a regras de jogo democráticas, o que implica a saída do presidente.

Felipe Celia e Alberto Matamoros, ambos do Atlantic Council, tuitaram, nesta quarta, que "a Nicarágua está em um ponto de inflexão que representa sua melhor chance de finalmente retornar a uma democracia plena".

Tomara, até porque a alternativa é "uma catástrofe humanitária de vastas proporções que afetará toda a região", teme o monsenhor Abelardo Mata, bispo de Estelí.

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