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REFLEXÃO

Políticas públicas de
planejamento familiar estão atrasadas?
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Folha de S.Paulo
09/11/2003

A geração dos filhos únicos

Até algum tempo atrás -não muito tempo-, o filho único era uma espécie de anomalia, um fato excepcional para o padrão familiar brasileiro.

O senso comum indicava que a ausência de irmãos -de quem apanhar, com quem brigar, disputar, fazer as pazes e unir-se contra os pais- faria das crianças adultos infelizes, mimados, incapazes de lidar com as inevitáveis frustrações. Excesso de cuidado e zelo, muitos dizem ainda, seria prejudicial à saúde mental.

A elite brasileira pode até acreditar nesse senso comum, sem base científica, mas está preferindo gerar apenas um filho, como revela pesquisa a ser divulgada no próximo ano pelo IBGE sobre o tamanho da família brasileira. Está surgindo no Brasil a geração dos filhos únicos.

Ainda em fase de preparação, a pesquisa, feita com base nos mais recentes dados do censo, informa que mães de família com uma renda per capita mensal de 20 salários mínimos (R$ 4.800) têm, em média, um filho. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o índice é de 0,89 -ou seja, menos de um filho por família.

Para chegar a essa média, deduz-se que uma percentagem não-desprezível de mulheres prefere não ser mãe. "As mulheres estão reclamando cada vez mais da dificuldade de ser mãe", diz Leonardo Posternak, pediatra há 30 anos e autor de livros sobre questões familiares.

Em seu consultório, ele observa crescer o número de pacientes que são filhos únicos. "A maternidade está associada ao desempenho profissional da mulher." A mulher, segundo ele, necessita da segurança profissional para se sentir segura como mãe.

Por causa da retração observada entre famílias de classe média e alta, a cidade de São Paulo está próxima de ver o que até há pouco tempo se imaginava impensável: reduzir sua população. É uma tendência que já se percebe em algumas metrópoles brasileiras.

Como chegam menos imigrantes e nascem menos crianças, o crescimento populacional paulistano está abaixo de 1,9%, fronteira da chamada taxa de reposição -morre mais gente do que nascem crianças ou chegam imigrantes. Os mais abastados, com as famílias encolhidas, sentem-se ilhados diante da pobreza crescente, com as famílias ampliadas.

Não é à toa que muitas escolas particulares vivem crise. A classe média ganha menos, tem menos filhos e, além disso, está optando por escolas públicas. Tudo isso significa menos matrículas.

As famílias de maior poder aquisitivo e, portanto, de melhor escolaridade fazem contas simples. Calculam de quanto tempo e dinheiro dispõem para cuidar de uma criança; tempo e dinheiro estão diminuindo, enquanto sobem os custos médicos e escolares. E quem mais deveria fazer esse tipo de cálculo menos planeja o tamanho da família -o que é de uma estúpida perversidade social.

Segundo os dados ainda preliminares do IBGE, na faixa de mulheres que vivem em famílias com R$ 50 per capita, pouco mais de um quinto de um salário mínimo, a taxa de fecundidade é de 5,35 filhos por mulher.

Traduzindo: são necessárias cinco mulheres da camada mais rica da população para gerar o mesmo número de filhos de uma mulher miserável. Mais uma tradução: 96 mães miseráveis conseguem, juntas, a renda de apenas uma mulher da elite.

Essa perversidade é provocada por uma conjunção de, pelo menos, dois fatores: 1) falta de condições das mulheres mais pobres, desprovidas de um projeto de vida; 2) falta de coragem e de competência dos governantes para estabelecer políticas de planejamento familiar.

O que existe de política pública é ínfimo, desprezível, diante das necessidades e das complexidades de um planejamento familiar. Teria de ser algo do porte (sem as mesmas trapalhadas, é claro) de um Fome Zero, algo como um "Gravidez Indesejada Zero".
Deveria se tornar uma política tão importante quanto um Bolsa-Família, que vai alimentar muitos dos miseráveis que nasceram não pela vontade, mas pela miserabilidade da mãe. Passam, então, a ser não cidadãos, mas mendigos estatais.

A importância dessa pesquisa do IBGE é desmontar uma ilusão -a de que a questão do planejamento familiar não é tão urgente porque, afinal, a taxa de fecundidade média do país está caindo rapidamente.

O problema é que, como vimos, cai muito mais rapidamente entre os ricos do que entre os pobres. Já que o presidente Lula fala tanto em covardia dos outros -e, em seguidas declarações de, digamos, auto-amor, promete fazer o que ninguém fez-, quem sabe ele se entusiasme em colocar, pela primeira vez em nossa história, o planejamento familiar no topo da agenda brasileira.

PS - Segundo as experiências que conheci, não adianta sair apenas distribuindo informação e métodos anticoncepcionais. Planejamento familiar é algo muito mais complexo do que isso -meninas, mesmo pobres, preocupam-se mais com os estudos e, portanto, avaliam os riscos da gravidez quando conseguem construir um projeto de vida, sentindo-se protagonistas de sua história. Traduzindo: a educação contra a gravidez deveria estar no currículo escolar.



Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos.

   
 
 
 

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