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Até algum tempo atrás
-não muito tempo-, o filho único era uma espécie
de anomalia, um fato excepcional para o padrão familiar
brasileiro.
O senso comum indicava que a ausência de irmãos
-de quem apanhar, com quem brigar, disputar, fazer as pazes
e unir-se contra os pais- faria das crianças adultos
infelizes, mimados, incapazes de lidar com as inevitáveis
frustrações. Excesso de cuidado e zelo, muitos
dizem ainda, seria prejudicial à saúde mental.
A elite brasileira pode até acreditar nesse senso comum,
sem base científica, mas está preferindo gerar
apenas um filho, como revela pesquisa a ser divulgada no próximo
ano pelo IBGE sobre o tamanho da família brasileira.
Está surgindo no Brasil a geração dos
filhos únicos.
Ainda em fase de preparação, a pesquisa, feita
com base nos mais recentes dados do censo, informa que mães
de família com uma renda per capita mensal de 20 salários
mínimos (R$ 4.800) têm, em média, um filho.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o índice é
de 0,89 -ou seja, menos de um filho por família.
Para chegar a essa média, deduz-se que uma percentagem
não-desprezível de mulheres prefere não
ser mãe. "As mulheres estão reclamando
cada vez mais da dificuldade de ser mãe", diz
Leonardo Posternak, pediatra há 30 anos e autor de
livros sobre questões familiares.
Em seu consultório, ele observa crescer o número
de pacientes que são filhos únicos. "A
maternidade está associada ao desempenho profissional
da mulher." A mulher, segundo ele, necessita da segurança
profissional para se sentir segura como mãe.
Por causa da retração
observada entre famílias de classe média e alta,
a cidade de São Paulo está próxima de
ver o que até há pouco tempo se imaginava impensável:
reduzir sua população. É uma tendência
que já se percebe em algumas metrópoles brasileiras.
Como chegam menos imigrantes e nascem menos crianças,
o crescimento populacional paulistano está abaixo de
1,9%, fronteira da chamada taxa de reposição
-morre mais gente do que nascem crianças ou chegam
imigrantes. Os mais abastados, com as famílias encolhidas,
sentem-se ilhados diante da pobreza crescente, com as famílias
ampliadas.
Não é à toa que muitas escolas particulares
vivem crise. A classe média ganha menos, tem menos
filhos e, além disso, está optando por escolas
públicas. Tudo isso significa menos matrículas.
As famílias de maior poder
aquisitivo e, portanto, de melhor escolaridade fazem contas
simples. Calculam de quanto tempo e dinheiro dispõem
para cuidar de uma criança; tempo e dinheiro estão
diminuindo, enquanto sobem os custos médicos e escolares.
E quem mais deveria fazer esse tipo de cálculo menos
planeja o tamanho da família -o que é de uma
estúpida perversidade social.
Segundo os dados ainda preliminares
do IBGE, na faixa de mulheres que vivem em famílias
com R$ 50 per capita, pouco mais de um quinto de um salário
mínimo, a taxa de fecundidade é de 5,35 filhos
por mulher.
Traduzindo: são necessárias cinco mulheres da
camada mais rica da população para gerar o mesmo
número de filhos de uma mulher miserável. Mais
uma tradução: 96 mães miseráveis
conseguem, juntas, a renda de apenas uma mulher da elite.
Essa perversidade é provocada
por uma conjunção de, pelo menos, dois fatores:
1) falta de condições das mulheres mais pobres,
desprovidas de um projeto de vida; 2) falta de coragem e de
competência dos governantes para estabelecer políticas
de planejamento familiar.
O que existe de política pública é ínfimo,
desprezível, diante das necessidades e das complexidades
de um planejamento familiar. Teria de ser algo do porte (sem
as mesmas trapalhadas, é claro) de um Fome Zero, algo
como um "Gravidez Indesejada Zero".
Deveria se tornar uma política tão importante
quanto um Bolsa-Família, que vai alimentar muitos dos
miseráveis que nasceram não pela vontade, mas
pela miserabilidade da mãe. Passam, então, a
ser não cidadãos, mas mendigos estatais.
A importância dessa pesquisa
do IBGE é desmontar uma ilusão -a de que a questão
do planejamento familiar não é tão urgente
porque, afinal, a taxa de fecundidade média do país
está caindo rapidamente.
O problema é que, como vimos, cai muito mais rapidamente
entre os ricos do que entre os pobres. Já que o presidente
Lula fala tanto em covardia dos outros -e, em seguidas declarações
de, digamos, auto-amor, promete fazer o que ninguém
fez-, quem sabe ele se entusiasme em colocar, pela primeira
vez em nossa história, o planejamento familiar no topo
da agenda brasileira.
PS - Segundo as experiências
que conheci, não adianta sair apenas distribuindo informação
e métodos anticoncepcionais. Planejamento familiar
é algo muito mais complexo do que isso -meninas, mesmo
pobres, preocupam-se mais com os estudos e, portanto, avaliam
os riscos da gravidez quando conseguem construir um projeto
de vida, sentindo-se protagonistas de sua história.
Traduzindo: a educação contra a gravidez deveria
estar no currículo escolar.
Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo,
aos domingos.
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