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REFLEXÃO


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urbanidade
10/03/2004
Mistérios da praça Benedito Calixto

Um simples detalhe na herança de um milionário despertou uma incontida cobiça - o sumiço de uma caneta raríssima. Ao saírem à procura da preciosidade, guiados por pistas que os levavam a confrarias de antiquários freqüentadas por seres apaixonados por canetas, colecionadores acabaram involuntariamente revelando mistérios da morte do milionário.

Esse roteiro de um livro de ficção, cujos originais estão adormecidos numa gaveta, nasceu na praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde todos os sábados há uma feira de antigüidades. A praça é local privilegiado para conhecer a alma do colecionador -ainda mais porque uma vendedora de canetas dali também é psicóloga, treinada para entender as sutilezas da mente.

A psicóloga Zulmira Cabral já tinha 40 anos de idade quando, em 1987, mudou radicalmente de atividade profissional. Deixou a clínica e seus pacientes para vender relógios e canetas antigos na Benedito Calixto. "Gostava de canetas e as colecionava em meu consultório."

Aos poucos, porém, ela percebeu a confluência entre as peças que vendia e a psicologia: "Conheci particularidades da alma humana". Viu como os colecionadores se sentem autores de uma obra que imaginam imortal, mas só encontram ressonância entre seus pares -fora desse âmbito, são solitários, incompreendidos. "O colecionador não tem herdeiro", diz.

A coleção se desfaz com a morte de seu dono. As famílias não costumam acompanhar a paixão; muitas vezes, são até mesmo ressentidas com os milhares de peças espalhadas numa parte da casa. Em geral, as peças consumiram a atenção do colecionador e mesmo o seu dinheiro. Um dos clientes de Zulmira, por exemplo, desfez seu casamento. Sua ex-mulher quer metade do caríssimo estoque de 1.352 canetas, algumas das quais muito raras. Quer o valor, obviamente, em espécie -até porque detesta canetas. O caso está na Justiça para que seja discutido o direito que alguém teria de reivindicar uma coleção, propriedade cujo valor também é simbólico.

Diante dessas histórias de paixão por objetos que resistem ao tempo, Zulmira resolveu escrever um romance sobre a psicologia do colecionador, com personagens fictícios. "Não sei nem se vou publicar", diz ela, desconfiada de suas habilidades de escritora. Não existe pressa. Aprendeu, com seus relógios e canetas, a tirar proveito do tempo -e de seus mistérios.




Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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