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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
12/06/2006
O vestibular do futuro

Proposta de valorizar a reflexão crítica na seleção para a USP terá impacto positivo em todo o país

A decisão da Universidade de São Paulo, anunciada na semana passada, de valorizar a reflexão crítica nos seus testes de vestibular é uma notícia extraordinária -é uma proposta que vai além do vestibular e de São Paulo. Isso porque deve mexer no cotidiano das escolas em geral, exigir mais de alunos e reciclar os professores, resultando em um impacto positivo em toda a educação brasileira. Em essência, a proposta é medir menos o conhecimento acumulado em cada disciplina, como química, física ou história, do que a habilidade em relacionar dados. É o que os educadores chamam de questões interdisciplinares. A nota é conferida, portanto, não pela informação sobre um assunto específico, mas pela sua relação com as demais matérias. Isso significa que uma pergunta sobre o aquecimento do planeta provocado pelo efeito estufa pode exigir o domínio do estudante em química, física, matemática, história, biologia e, quem sabe, literatura. Por que, afinal, essa mistura teria tanto efeito não só no vestibular mas em toda a educação?

Em primeiro lugar, porque a USP é uma das instituições universitárias mais renomadas nacionalmente, e, por isso, seu vestibular é um dos mais disputados por candidatos de todo o país. Em segundo -e mais importante-, é porque o modelo de teste anunciado, embora sem maiores detalhes, abala a estrutura curricular do ensino médio e se estende ao fundamental. Atualmente, o vestibular da USP demanda um imenso acúmulo de informações dos candidatos. Por exemplo: o aluno tem de estudar, em história, da pré-história a fatos contemporâneos, chegando ao mensalão. Educadores reclamam há muito tempo, e com boa dose de razão, que não conseguem aprofundar os tópicos. Sei como os professores mais sérios tentam escapar desse esquema cruel, propõem atividades mais conectadas ao cotidiano, estimulam a realização de projetos. Mas estão conscientes de que, se os alunos não entrarem nas melhores faculdades, a escola será trucidada pelos pais. É perverso e ignorante, mas é assim que funciona. Para atender às demandas de entrada na universidade, o currículo se divide em disciplinas que, na maioria das vezes, não se comunicam. Concluído o vestibular, os alunos esquecem o que aprenderam, por falta de utilidade. Em poucas palavras, ensina-se muita coisa desnecessária, pela simples razão de que informação só tem valor quando revelamos sua utilidade -ou se gera prazer. Faça, caro leitor, um teste: tente lembrar o que aprendeu sobre a tabela periódica.

O problema mesmo é a desconexão entre as exigências do mercado e o sistema rígido de disciplinas. Os responsáveis pelos departamentos de recursos humanos repetem sem parar que as empresas querem indivíduos criativos, capazes de trafegar pelas mais diversas áreas do saber. Exigem-se autonomia de pesquisa, capacidade de trabalhar em grupo e empreendedorismo. São pessoas que, em suma, respondem aos problemas com rapidez -e os problemas envolvem uma série de fatores inter e multidisciplinares. Isso não está nem remotamente próximo do bitolado que só aprende a pensar de forma fragmentada.

Se tal modelo de vestibular vai exigir muito das escolas privadas, mais ainda será exigido das públicas. A habilidade de associação de dados dos alunos vem, em boa parte, da base familiar (famílias leitoras são fundamentais), do estímulo a programas extracurriculares e da vivência cultural. Daí que o sonho de inclusão dos mais pobres nas universidades, além de eventuais benefícios com pontuações diferentes, terá de manter na agenda projetos de escola em tempo integral e da montagem de conexões entre a sala de aula e a cultura e a vivência comunitária, como se fossem um único ambiente de aprendizagem. Será cada vez mais papel das escolas públicas fazer essas conexões e treinar profissionais para essa tarefa. Até se conseguirá, aqui e ali, reduzir as exigências para entrar no ensino superior, mas dificilmente tais facilidades serão extensivas ao mercado de trabalho. A exclusão seria, assim, apenas questão de tempo.

P.S- Quem ensina a melhor forma de ajudar os pobres, sem demagogia, é a Embraer, que criou uma escola de ensino médio gratuita selecionando alunos de instituições públicas. Devido à sua altíssima qualidade de ensino, eles estão entrando nas melhores universidades. É isso o que deveria ser disseminado pelo país. Tais unidades poderiam ser centros de experimentação para influenciar toda a rede pública, como foram, no passado, as escolas de aplicação e os centros vocacionais. É uma pena que a USP tenha cogitado, mas abandonado projeto parecido.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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