REFLEXÃO


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folha de s. paulo
24/12/2007

Como um bar virou centro cultural

Os mais jovens, especialmente rappers e sambistas, foram transformando o bar do Zé Batidão em centro cultural

Um grupo de 17 poetas da periferia começou a se reunir, há seis anos, no bar do Zé Batidão, vizinho ao cemitério São Luiz, notabilizado por ser o local em que existem mais jovens enterrados por metro quadrado. O cemitério está no Jardim Ângela (zona sul de São Paulo), apontado em documento da ONU como uma das regiões mais violentas do mundo. "Escolhemos o bar por absoluta falta de espaço para a convivência", conta Sérgio Vaz, um dos fundadores desse movimento de poetas da periferia.

Aos poucos, os mais jovens, especialmente rappers e sambistas, foram transformando o bar do Zé Batidão em centro cultural, no qual se produziam livros e formavam grupos musicais. Alguns deles, para poderem se expressar melhor, voltaram a estudar, interessados, via literatura, pela língua portuguesa.

Todas as quartas-feiras, os saraus do Zé Batidão ficam lotados -e cada vez mais lotados-, já que viraram um ponto de referência não só do bairro mas da cidade de São Paulo: mais de 300 pessoas reúnem-se apenas para declamar e ouvir poesias.

Por causa do horário e da bebida, os menores de 18 anos não iam até os saraus, até porque tinham de acordar bem cedo para ir à escola no dia seguinte. Resultado: como as crianças não podiam ir à poesia, a poesia foi até elas. Foram montados, neste ano, saraus dentro das escolas.

A experiência deu tão certo que as escolas começaram a organizar os seus próprios saraus. "Os alunos nunca tinham ouvido alguém declamar uma poesia", conta Sérgio Vaz. Alguns dos estudantes descobriram que, ao se expressarem, se sentiam mais confiantes.

Na medida em que se criava um centro cultural naquele improvável bar, na vizinhança de um cemitério que se prestava à contabilidade diária da selvageria -e, portanto, da falta de valor da palavra-, o Jardim Ângela se transformava, devido a uma articulação pela paz, comandada inicialmente por religiosos. Despencou o número de assassinatos, o que ajudou na queda da taxa geral de homicídios da cidade de São Paulo, que, desde 1999, caiu 72%.

O bar do Zé Batidão é a porta de saída da vulnerabilidade juvenil brasileira, exposta, na semana passada, em pesquisa da Ritla (Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana). Os dados só reforçam o fato de que a juventude é a maior bomba social brasileira, refletido nos níveis de violência. O mais trágico dos dados: 7 milhões de jovens de idades entre os 15 e os 24 anos nem estudam nem trabalham.

A pesquisa informa que, mesmo entre os que estudam, o aprendizado é baixo, a começar da língua portuguesa. A imensa maioria deles não chega ao ensino médio e, muito menos, à faculdade. Foi no ano de 2007 que ficou mais clara a tragédia no ensino médio, no qual faltam professores, e começaram a se esboçar soluções que vão desde a oferta de merenda até mudanças curriculares, com a aproximação dos alunos aos cursos profissionalizantes. Essa aproximação dá mais sentido ao currículo, conectando-o à realidade e ajudando a combater o apagão de trabalhadores qualificados. Nunca se falou tanto, como agora, do valor do ensino técnico.

Um saldo do ano de 2007 é o estímulo a planos que valorizem a aproximação da escola com a comunidade, de projetos nos quais se misturem, numa mesma malha territorial, educação, saúde, cultura, esporte e geração de renda. Esse é o sentido de programas federais que disseminam os bairros educativos nas regiões metropolitanas ou da extensão das ações de saúde para dentro das escolas. São projetos que ainda estão engatinhando e ainda estão longe de terem montado esquemas sólidos de gestão, mas, pelo menos, já apresentam um olhar mais sofisticado diante dos jovens, capazes de se encantar mais com a língua portuguesa estimulados por saraus em um bar do que com a burocrática professora exigindo a decoreba da chamada norma culta.

Quanto mais se aproximar a rua da escola e a escola da rua, menor o risco de vulnerabilidade juvenil -teremos mais trabalhadores qualificados e menos marginais. Ou mais jovens declamando poesias e menos adolescentes enterrados em um cemitério.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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