Os mais
jovens, especialmente rappers e sambistas, foram transformando
o bar do Zé Batidão em centro cultural
Um grupo de 17 poetas da periferia começou a se
reunir, há seis anos, no bar do Zé Batidão,
vizinho ao cemitério São Luiz, notabilizado
por ser o local em que existem mais jovens enterrados por
metro quadrado. O cemitério está no Jardim Ângela
(zona sul de São Paulo), apontado em documento da ONU
como uma das regiões mais violentas do mundo. "Escolhemos
o bar por absoluta falta de espaço para a convivência",
conta Sérgio Vaz, um dos fundadores desse movimento
de poetas da periferia.
Aos poucos, os mais jovens, especialmente rappers e sambistas,
foram transformando o bar do Zé Batidão em centro
cultural, no qual se produziam livros e formavam grupos musicais.
Alguns deles, para poderem se expressar melhor, voltaram a
estudar, interessados, via literatura, pela língua
portuguesa.
Todas as quartas-feiras, os saraus do Zé Batidão
ficam lotados -e cada vez mais lotados-, já que viraram
um ponto de referência não só do bairro
mas da cidade de São Paulo: mais de 300 pessoas reúnem-se
apenas para declamar e ouvir poesias.
Por causa do horário e da bebida, os menores de 18
anos não iam até os saraus, até porque
tinham de acordar bem cedo para ir à escola no dia
seguinte. Resultado: como as crianças não podiam
ir à poesia, a poesia foi até elas. Foram montados,
neste ano, saraus dentro das escolas.
A experiência deu tão certo que as escolas começaram
a organizar os seus próprios saraus. "Os alunos
nunca tinham ouvido alguém declamar uma poesia",
conta Sérgio Vaz. Alguns dos estudantes descobriram
que, ao se expressarem, se sentiam mais confiantes.
Na medida em que se criava um centro
cultural naquele improvável bar, na vizinhança
de um cemitério que se prestava à contabilidade
diária da selvageria -e, portanto, da falta de valor
da palavra-, o Jardim Ângela se transformava, devido
a uma articulação pela paz, comandada inicialmente
por religiosos. Despencou o número de assassinatos,
o que ajudou na queda da taxa geral de homicídios da
cidade de São Paulo, que, desde 1999, caiu 72%.
O bar do Zé Batidão é a porta de saída
da vulnerabilidade juvenil brasileira, exposta, na semana
passada, em pesquisa da Ritla (Rede de Informação
Tecnológica Latino-Americana). Os dados só reforçam
o fato de que a juventude é a maior bomba social brasileira,
refletido nos níveis de violência. O mais trágico
dos dados: 7 milhões de jovens de idades entre os 15
e os 24 anos nem estudam nem trabalham.
A pesquisa informa que, mesmo entre os que estudam, o aprendizado
é baixo, a começar da língua portuguesa.
A imensa maioria deles não chega ao ensino médio
e, muito menos, à faculdade. Foi no ano de 2007 que
ficou mais clara a tragédia no ensino médio,
no qual faltam professores, e começaram a se esboçar
soluções que vão desde a oferta de merenda
até mudanças curriculares, com a aproximação
dos alunos aos cursos profissionalizantes. Essa aproximação
dá mais sentido ao currículo, conectando-o à
realidade e ajudando a combater o apagão de trabalhadores
qualificados. Nunca se falou tanto, como agora, do valor do
ensino técnico.
Um saldo do ano de 2007 é o estímulo a planos
que valorizem a aproximação da escola com a
comunidade, de projetos nos quais se misturem, numa mesma
malha territorial, educação, saúde, cultura,
esporte e geração de renda. Esse é o
sentido de programas federais que disseminam os bairros educativos
nas regiões metropolitanas ou da extensão das
ações de saúde para dentro das escolas.
São projetos que ainda estão engatinhando e
ainda estão longe de terem montado esquemas sólidos
de gestão, mas, pelo menos, já apresentam um
olhar mais sofisticado diante dos jovens, capazes de se encantar
mais com a língua portuguesa estimulados por saraus
em um bar do que com a burocrática professora exigindo
a decoreba da chamada norma culta.
Quanto mais se aproximar a rua da escola e a escola da rua,
menor o risco de vulnerabilidade juvenil -teremos mais trabalhadores
qualificados e menos marginais. Ou mais jovens declamando
poesias e menos adolescentes enterrados em um cemitério.
Coluna originalmente publicada
na Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.
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