REFLEXÃO


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folha de s.paulo
27/08/2007

Reféns dos filhos

O Bolsa Família funciona como uma reparação de guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados



Mais uma Bolsa a caminho. Está previsto para o dia 5 de setembro o anúncio do governo federal da distribuição de dinheiro diretamente aos jovens de 15 a 17 anos, desde que freqüentem a escola. Imagina-se que, assim, eles não venham a engrossar as estatísticas educacionais de evasão escolar e que tenham chance de obter um emprego no futuro. Faz sentido?

Podemos levantar uma série de dúvidas sobre até que ponto mais dois ou três anos em uma escola ruim ajudariam alguém a obter um emprego, especialmente nas regiões metropolitanas, nas quais se exige mão-de-obra mais preparada. Mas não se pode negar que o novo benefício faça sentido se o objetivo final das bolsas é dar autonomia aos indivíduos, não fazê-los eternamente dependentes de assistência pública.

Na semana passada, o governo federal divulgou balanço sobre o Bolsa Família, com reluzentes números: mais de 41 milhões de pessoas beneficiadas, o que representa a maior parte da população com menor poder aquisitivo. Ao ler o perfil dos beneficiários, tem-se a satisfação de ver que os recursos vão mesmo para quem mais precisa, mas é inevitável a conclusão de estar nascendo uma multidão de pais e mães reféns dos filhos que fazem da paternidade uma profissão. O que acontecerá quando as crianças crescerem e os pais perderem a fonte de renda?

O governo alega que está em andamento a articulação de uma série de programas de diferentes ministérios para que se ofereça uma porta de saída, ou seja, condições de o indivíduo não depender mais de favores oficiais. Fala-se em juntar vários projetos, desde as aulas de alfabetização, passando pelo microcrédito, até a capacitação profissional. Mesmo que esses programas sejam bons, quantos indivíduos sempre serão dependentes?

Certamente não interessa ao governo dar com clareza a resposta. O perfil divulgado dos beneficiários das bolsas sugere que, para muitos deles, dificilmente haverá porta de saída. Expressiva maioria deles são de adultos incapazes de ler e entender um texto simples. Há uma quantidade gigantesca de mulheres chefes de família com muitos filhos.

Isso sem contar as multidões de brasileiros, cujo acúmulo de doenças não tratadas fez que perdessem as condições necessárias de saúde para manter um emprego. Mesmo com o crescimento das oportunidades de emprego, pessoas com tais carências têm dificuldades de entrar no mercado formal de trabalho. Isso significa que o Bolsa Família não presta? Não, mas significa que não estão contando toda a verdade.

É evidente que não se deve deter o esforço de garantir a autonomia dos 11 milhões de famílias que recebem as bolsas. Articular diferentes ações nos âmbitos federal, estadual e municipal, auxiliando na capacitação profissional, certamente trará efeitos positivos. A experiência mostra que, quanto mais e melhor se fizerem os chamados arranjos educativos, aproveitando as vocações econômicas locais, maior será a chance de emprego. O somatório dos pequenos arranjos, espalhados pelos municípios, vai tirar gente daquela lista dos 11 milhões de famílias.

Para os adultos, o Bolsa Família é simplesmente uma redução de danos. E, aí, funciona bem. Como o dinheiro vai mesmo para os mais pobres, aumentou o consumo de alimentos, ativaram-se comércios locais e melhorou a distribuição de renda. Pesquisadores começam a perceber mudança no fluxo migratório, já que as famílias teriam mais condições de ficar em suas cidades.

Evita-se que sejam obrigadas a viver nas favelas urbanas à procura de algum bico, vítimas da violência. Há indícios até mesmo de volta dos migrantes para sua terra.
O problema é que se paga uma conta passada de uma série de omissões que vão da falta de atenção ao ensino básico, passando pela pouca seriedade nos planos de irrigação, até a pouca oferta de planejamento familiar. O Bolsa Família funciona, então, como uma espécie de reparação de guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados.

Dá para apostar - daí o sentido da bolsa para os jovens de 15 a 17 anos- menos nos pais do que nos filhos do Bolsa Família, desde que recebam educação com um mínimo de qualidade. Pela primeira vez em nossa história, transformou-se em consenso a idéia tão óbvia de que a porta de saída começa no berço. Fora disso, é só redução de danos.

PS - Um dos piores exemplos sociais brasileiros está na cidade de São Paulo, onde se criou o "turno da fome". Por falta de espaço, os estudantes ficam na sala de aula na hora do almoço. Mas, do vexame, vemos surgir a força das lideranças locais. Em vez de esperar pela construção de novas escolas ou salas, diretores e professores reuniram-se para discutir a ocupação do espaço e foram achando pequenas soluções. Sem gastar, conseguiram tirar 114 mil crianças do turno da fome e elas começaram a ter uma hora a mais de aula por dia. A porta de saída para o desenvolvimento social brasileiro é a engenhosidade comunitária.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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