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REFLEXÃO


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urbanidade
29/06/2005
Jardim das Jabuticabas

Ao plantar um pé de jabuticaba numa praça pública, na manhã de domingo passado, o psiquiatra e psicanalista Nelson Luis Carrozzo voltou quase 50 anos no tempo. Lembrou-se da primeira vez que, em férias no sítio de seu avô, viu aquelas árvores cobertas de frutas negras com polpas brancas. "Vivia montado nos galhos, devorando o que podia." O avô ensinou-lhe que os galhos, apesar de finos, eram fortes.

Por muitos anos, as jabuticabas fizeram parte da vida daquele menino criado no interior de São Paulo, para quem as ruas se misturavam, quase como se fossem um espaço único, à sua casa. Numa das cidades em que viveu -o pai, engenheiro eletrônico, trabalhava para o Exército, o que o obrigava a fazer constantes mudanças de endereço-, Nelson teve a sorte de morar numa residência que tinha uma floresta de jabuticabeiras no quintal.

Os estudos trouxeram-lhe para São Paulo. Sentia-se sufocado. "Era como se me faltasse ar." Não se habituava à correria, ao trânsito, à poluição e, muito menos, à falta de horizonte. Morava num pequeno apartamento no bairro da Aclimação. Sua única paisagem, observada de uma exígua janela, consistia em uma imensa garagem de ônibus abandonada. "O apartamento mínimo e a vista da garagem só aumentavam meu incômodo."

Anos depois, a garagem virou uma praça, mas, mesmo assim, a desolação não desapareceu: estava sempre suja, com lixo acumulado aos montes, o mato alto e o lago -ali existe uma nascente de rio- transformado em banheiro. Mendigos fizeram dali sua habitação. Como dirigia, no bairro, uma entidade de saúde mental (chamada A Casa) voltada para a oferta de serviços comunitários, Nelson vivia imaginando um meio de envolver os vizinhos na recuperação daquela praça. "Não sabia por onde começar."

Ao lado de assistentes sociais e terapeutas com quem trabalhava, ele foi batendo de porta em porta na busca de aliados. Viu que não era o único a incomodar-se com aquele ambiente deteriorado.

Até que, neste ano, conseguiu, com a ajuda da prefeitura, reparações na praça e doações de árvores, algumas das quais frutíferas -"assim vamos atrair os pássaros"-, para serem plantadas em mutirão. No domingo passado, dia da festa de revitalização da praça, Nelson já não tinha dúvida sobre qual árvore plantaria. Desde aquela manhã, começou a frutificar ali, com suas memórias, uma jabuticabeira.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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