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Barcaça
integrou, no século 19, os percursos marítimo e fluvial
num único trajeto
(24/10/1999)
Armadilhas
da palavra
EVALDO CABRAL DE MELLO
Nos
anos 40 do século 19, a barcaça tornou-se o tipo dominante
de embarcação na cabotagem do Nordeste oriental, em
substituição à sumaca, que não pudera
resistir às repercussões da crescente provincialização
do comércio regional em dano do entreposto recifense nem
ao assoreamento dos pequenos portos litorâneos. Como a sumaca,
a barcaça tinha fundo "de prato", isto é,
chato, mas era-lhe inferior no calado e na capacidade de carga,
podendo dispor de um ou dois mastros, com velas latinas, cobertura
com cavernas na proa e na popa e paus de embono para manter sua
estabilidade. O meio da embarcação era destinado à
carga, ali depositada através de uma grande escotilha, a
"sepultura". Dispondo em média de 21 m de comprimento
por 4 m de boca, a barcaça deslocava cerca de 45 toneladas
métricas, dentro de uma faixa de 25 a 50 toneladas. Pretendia
Pereira da Costa, historiador local, que a barcaça já
tivesse participado das guerras holandesas, como por ocasião
do ataque ao forte do Cabedelo (1634). Na realidade, esses navios
nada tinham a ver com a barcaça que se generalizou ao longo
de oitocentos. Trata-se, portanto, de um exemplo das armadilhas
que uma palavra pode aprontar ao estudioso desatento às vicissitudes
da linguagem.
Contudo o leitor não a encontrará mencionada nas páginas
dos viajantes estrangeiros que visitaram o Nordeste naqueles anos,
embora Gardner mencione certo "pequeno navio carregado de algodão"
em que velejara de Maceió ao Recife em quatro dias. A embarcação
não era uma canoa do alto, em que já viajara e que
descreverá em minúcias, nem uma lancha, que vira singrar
na lagoa Manguaba. Caso tivesse se tratado de alguma sumaca, Gardner,
como inglês, a teria facilmente reconhecido. O provável,
por conseguinte, é que ela tenha sido uma barcaça.
Que ele não mencionasse sua designação é,
aliás, significativo da hesitação terminológica
que presidiu à aparição deste tipo de barco,
revelada, aliás, pela própria capitania do porto do
Recife, que demorou em encampar a denominação popular
pela qual já era conhecida. De outra maneira, não
se explicaria que somente a partir de 1855 tenha sido cadastrada
pelas autoridades portuárias.
Esses registros, publicados em anexo aos relatórios anuais
do ministério da Marinha, só aludem de 1848 a 1853
a lanchas, canoas e alvarengas; o de 1854 contém ademais
referência a "barcos". É o de 1855 que alude
pela primeira vez a "barcaças", juntamente com
as canoas do alto, omitindo-se a alusão anterior a "barcos".
Os barcos de 1854 eram, portanto, as barcaças do ano seguinte.
Para afirmar a existência da barcaça nordestina nos
começos do século 17, Pereira da Costa fiou-se num
especialista da história da construção naval
no Brasil, o almirante Alves Câmara, que, por sua vez, baseara-se
nas "Memórias Históricas da Província
de Pernambuco", de Fernandes Gama. Este repetira a narrativa
da perda do Cabedelo, feita por fonte coeva, as "Memórias
Diárias de la Guerra del Brasil", de Duarte de Albuquerque
Coelho (1654), em que se encontram diversas alusões a "barcazas".
Delas, depreende-se que esse tipo de embarcação era
via de regra utilizado no transporte de tropas holandesas, constituindo
uma embarcação auxiliar da guerra naval, o que não
se coaduna nem com a função nem com a arquitetura
da barcaça nordestina. O cotejo das versões que desses
episódios proporcionam as "Memórias Diárias"
e a principal fonte holandesa da época, o "Iaerlyck
Verhael", de Johan de Laet, leva à conclusão
de que o barco que Duarte de Albuquerque Coelho chamava "barcaza"
era o que os neerlandeses designavam por "jacht".
O iate, vocábulo de origem batava, originara-se no século
16, passando, como a sumaca, da Holanda à Inglaterra, sendo
usado para fins oficiais, comerciais e até para o lazer,
caracterizando-se pela velocidade que lhe conferia a estreiteza
da armação. A "barcaza" de Duarte de Albuquerque
era, portanto, o "jacht" holandês, não a
nossa barcaça oitocentista. Confrontado por um tipo de embarcação
desconhecido na península Ibérica e ainda sem designação
em castelhano ou português, o cronista recorrera ao termo
que na Espanha, como em Portugal, era indiferentemente utilizado,
seja com o significado lato de barco grande, seja na acepção
estrita de embarcação apropriada ao serviço
portuário. Desse modo, a repetição acrítica
de um texto do século 17 resultou num anacronismo que fez
recuar de mais de 200 anos o aparecimento da barcaça nordestina.
Não ocorrera a Alves Câmara ou a Pereira da Costa que
o mesmo vocábulo pudesse designar tipos diferentes, separados
no tempo. Com efeito, nem as demais fontes luso-brasileiras do período
holandês nem as de história do Nordeste referir-se-ão
a barcaças nos dois séculos seguintes.
Terão as barcaças existido sob outra designação?
Os "barcos" referidos na matrícula do porto do
Recife (1749) eram quase todos sumacas. Não é crível
que o documento tivesse omitido uma embarcação de
pequena cabotagem, caso desempenhasse papel relevante. Cumpre ainda
examinar a hipótese de que, por contaminação
semântica, a palavra "alvarenga" tenha designado
também a barcaça, como atesta, para os anos 20 do
século 20, o belo poema de Joaquim Cardozo. Esse fenômeno,
contudo, foi recente. Em fins de oitocentos, Alves Câmara
e Pereira da Costa ainda definiam a alvarenga como uma embarcação
exclusivamente portuária, destinada à carga e descarga
dos navios, movida a remo e só excepcionalmente à
vela.
Aliás, o registro do porto do Recife (1855) distingue claramente
barcaças e alvarengas. Só excepcionalmente as alvarengas
eram utilizadas em percursos litorâneos. Em 1875, o engenheiro
Victor Fournié mencionava a existência, no ancoradouro
do Recife, do "porto interior ou porto das alvarengas",
mas ao que tudo indica se tratava dos barcos destinados a transportar
o açúcar dos armazéns para bordo dos navios
de alto-mar.
Esses problemas de origem dão lugar com frequência
a questões insolúveis. É mais importante compreender
as razões da rápida vitória da barcaça.
Sua grande vantagem consistia em que, ao contrário da sumaca,
que só tinha acesso a um e outro curso fluvial, ela podia
subi-los facilmente, de vez que exigia pouca profundidade e aproveitava-se
das marés altas, pois, graças à sua construção,
podia ficar em seco, mesmo quando carregada. O cordão de
arrecifes que borda o litoral nordestino e no interior do qual a
barcaça podia velejar com mais segurança e conforto
tornava a navegação dependente das barretas, isto
é, das interrupções da linha de pedras e esteiros
alagados, muitas das quais só transponíveis por barcaças.
Daí que o patrono da hidrografia brasileira, Vital de Oliveira,
seguisse nos seus roteiros a praxe de referir, ao lado da barra
de rio, a barreta acessível apenas às pequenas embarcações,
a alternativa preferida dos barcaceiros ou a que recorriam segundo
a estação do ano. Destarte, a barcaça atendia
diretamente aos engenhos dispersos ao longo dos pequenos rios do
litoral, barateando os custos de transporte, para o que dispunha
também de tripulação mínima. Graças
ao que, ela sobreviveu à própria concorrência
dos barcos a vapor das companhias provinciais de navegação,
os quais, como outrora as sumacas, estavam restritos aos portos
de mar, além de implicarem investimento elevado e maiores
despesas de manutenção. Mercê do seu fundo chato,
a barcaça integrou os percursos marítimo e fluvial,
até então separados, num único trajeto.
Leia mais: Bairrismo
no Império
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