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Cidade
na periferia de Recife mostra que o Brasil pode se tornar um bom
lugar
(28/11/1999)
Resistência
à barbárie
JURANDIR FREIRE COSTA
À
primeira vista, nada de espetacular. Camaragibe é uma pequena
cidade de 120 mil habitantes localizada na periferia de Recife.
Há 17 anos, deixou de ser distrito do município de
São Lourenço da Mata e a metamorfose começou.
Dessa vez, no entanto, a mudança aconteceu na contramão
do que vem ocorrendo, de modo geral, no Brasil. Em vez de degradação
urbana e ecológica, recuperação do espaço
do cidadão e do meio ambiente; em vez de mortalidade infantil,
miséria, tráfico de drogas, desemprego, delinquência
juvenil, violência, prostituição de crianças,
turismo predatório, corrupção, demagogia, endividamento
da administração, uma impressionante estatística
de cuidado e respeito ao outro.
Em meados deste ano, o atual prefeito, Paulo Santana, recebeu o
prêmio Prefeito Criança, concedido pela Unicef e pela
Fundação Abrinq aos 20 municípios brasileiros
com projetos mais bem-sucedidos na assistência a crianças
e adolescentes. A implantação do atendimento dentário
domiciliar fez da cidade modelo de saúde bucal; o projeto
de atenção médico-psicológica a meninas
reduziu, de modo drástico, a gravidez infantil; a lei de
Dação, que permite o pagamento de dívidas ao
município em doações de imóveis ou serviços
de infra-estrutura comunitária, fez de maus devedores cidadãos
empenhados em participar do bem-estar de sua cidade; espécies
nativas da mata atlântica estão sendo cultivadas em
um viveiro florestal; 5,5% do orçamento é destinado
ao incentivo da cultura e do esporte e, por último e o mais
importante, a cidade tem a menor taxa de mortalidade infantil do
Nordeste (5,6 por 1000, inferior à de São Paulo) e
100% das crianças com idade de 7 a 14 anos estão na
escola. Tudo isso, pasmem, não impediu a prefeitura de pagar
a seus funcionários um salário mínimo de R$
163,00 -acima da média da maioria do país!
Gilberto Dimenstein, ao comentar o fato, nesse jornal, em agosto
passado, dizia que tais experiências "mostram como somos
idiotas sociais". Ou seja, além de truculentos, cínicos,
gananciosos, oportunistas e superficialmente "modernosos",
nos tornamos "idiotas" ao desconhecer que não pode
existir riqueza material ou espiritual construída sobre a
destruição físico-moral de seres humanos e
do ambiente natural. Nessa cidadezinha ninguém quer fabricar
"miamis" pagas com a exploração quase escravista
dos que as edificam; ninguém pensa que a solução
de problemas básicos de subsistência e de convivência
social está no turismo voraz e descontrolado que, quase sempre,
traz mais prejuízos morais e ambientais do que reais benefícios
econômicos; ninguém, por fim, espera de braços
cruzados que os fetiches do Estado ou da iniciativa privada venham,
miraculosamente, socorrer os que desistiram da responsabilidade
para consigo mesmos.
Não se trata de brincar de Poliana e repetir, como bobos
alegres, a receita de "como ser feliz na indigência tropical".
A experiência lograda de uma administração honesta,
competente e baseada na participação de todos não
exclui a crítica severa ao abuso de poder político
e econômico desse país. A chave da discussão
é outra. Trata-se de mostrar que viver sem menores abandonados
nas ruas, sem assaltos, sem crianças natimortas e analfabetas
ou cidadãos desempregados e entregues à privação
é, antes de tudo, sinal de criatividade, auto-respeito, autonomia
e exercício da dignidade.
As consequências de experiências felizes como essa são
maiores do que imaginamos. Em primeiro lugar, é reconfortante
observar que "pessoas comuns" são capazes de se
entusiasmar por algo que foge ao simples gozo passivo do consumo,
do espetáculo e das sensações, para citar o
que Zygmunt Bauman define como os hábitos dominantes de nosso
tempo. Encontrar satisfação no trabalho criativo não
exige rios de dinheiro, "spotlights" ou fotos em revistas
de celebridades. Em segundo lugar, a experiência é
exemplar por mostrar que o desprezo ou o pavor da participação
popular é uma invenção persecutório-ideológica
dos que nasceram e se educaram confinados no lado opulento do imaginário
"muro brasileiro", mais cruel e impiedoso que seu congênere
histórico de Berlim antes da queda.
O povo não é uma ficção de direita ou
de esquerda, é, simplesmente, o conjunto de indivíduos
comprometidos com aquilo consensualmente aceito como o Bem Comum.
Se cultivamos essa idéia, somos perfeitamente capazes de
agir de forma solidária; se, ao contrário, fazemos
dela uma farsa abastardada a serviço de uns poucos, o povo,
como seus líderes, passa a seguir as regras da lei do cão,
imposta pelos donos do poder. Em terceiro lugar, vem, talvez, o
fundamental. Ao educar crianças como estão sendo educadas
as crianças de Camaragibe, ensinamos o valor da vontade,
da determinação, do espírito de potência,
esses sim, o melhor antídoto e a melhor prevenção
contra a cultura da lassidão e da debilidade moral que leva
os privilegiados brasileiros a se ocuparem exclusivamente do próprio
umbigo e da quantidade de droga que têm que ingerir para suportarem
a futilidade existencial em que estão mergulhados.
Há 50 ou 60 anos, essa cidadezinha era, curiosamente, uma
vila operária onde os trabalhadores tinham assistência
médica, educação, condições dignas
de habitação e interesses culturais voltados para
o esporte, a música, as letras e a discussão política.
O tom do convívio social, obviamente, era dado pela tradição
conservadora. Mas o núcleo da socialização
democrática estava preservado. Os patrões não
pensavam em fazer dos empregados bestas de carga anônimas
e descartáveis ao se tornarem "improdutivas". Na
casa de alguns operários se podia ver, nas estantes, obras
da literatura brasileira e internacional, às vezes em edições
originais. O Brasil não sucumbira, ainda, à idéia
do "God is money" e, pobres ou ricos, muitos achavam que
existem coisas na vida que não se medem ou trocam por dinheiro.
Depois, veio tudo o que conhecemos, até o estado atual: assassinatos
gratuitos em ruas e cinemas; acintes culturais, econômicos
e sociais do tipo "New York Center", nas "barras
da tijuca" país afora; CPIs de narcotráfico,
mostrando que, entre nós, a aliança da elite com a
ralé parece ilustrar as mordazes sátiras de Brecht
ou as perigosas origens culturais do nazismo, como fez ver Hannah
Arendt em suas análises.
O renascer da pequena cidade pernambucana traz um sopro de esperança
e alívio para os que se recusam a olhar os 500 anos de nossa
história como um monte de ruínas. Exemplos como esse
mostram a lucidez da poesia cabralina: "Muita diferença
faz, entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás".
O Brasil, com menos cupidez e mais seriedade, pode se tornar um
bom lugar para viver.
Aos que escutarem o que foi dito -soluços desconsolados de
"esquerdas moribundas"-, recomendo uma visita a Camaragibe.
Lá, o dito é feito e o que é feito é,
de preferência, feito por todos, para todos e em nome de todos.
É isso a resistência à barbárie; é
isso a construção da democracia. Parabéns Camaragibe,
obrigado Camaragibe!
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