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A
cultura da autenticidade e da confissão leva os homens a
atitudes tolas e insensatas
(13/6/1999)
Roteiro social
da felicidade
JURANDIR FREIRE COSTA
Vamos
ao tesouro da sabedoria popular. Conta-se que um louco procurava
algo sob o facho de luz de um poste. Outro louco se aproxima, pergunta
o que ele estava procurando e obtém como resposta uma chave!
O segundo louco pergunta se ele tem certeza de que perdera a chave
naquele lugar. O primeiro diz que não, mas só ali
havia bastante luz para que se pudesse ver alguma coisa. O segundo,
espantado, diz que o primeiro é louco e propõe que
ambos procurem a chave no escuro.
A emenda é tão ruim quanto o soneto. Procurar o que
se perdeu no lugar errado, só porque está iluminado,
ou no lugar certo, mas onde nada se pode enxergar, são duas
saídas insensatas, pois ou nunca encontraremos o que queremos
achar, ou, se acharmos, não poderemos reconhecer o que encontramos.
A anedota pode metaforizar, para alguns, a cegueira do destino humano,
às voltas com o malogro inelutável da ilusória
realização do desejo. Entre o desejo e o objeto existe
sempre o empecilho da luz que nada ilumina ou da escuridão
que nos impede de reconhecer, quando encontramos, aquilo mesmo que
estamos procurando.
Mas, como disse Henry James, "nosso destino jamais se frustra".
A idéia do insucesso "intrínseco" à
natureza do desejo pode ser temperada com uma dose salutar de pragmatismo.
Em vez de sucumbir à sedução da impossibilidade,
por que não experimentar outra saída? Por exemplo,
no caso da anedota, por que não pensar em usar uma boa e
simples lanterna? É isso o que William James dizia, ao evocar
o adágio escolástico: "Onde encontrar uma contradição,
faça uma distinção". Feita a distinção,
o enigma ganha outra descrição, e, quem sabe, virão
a surgir novos fachos de luz, novas lanternas e novos parceiros
na busca do que desejamos.
A impressão que fica, ao se assistir ao filme de Todd Solondz,
"Felicidade", é a de "loucos em busca de uma
chave". O diretor evita, com inteligência, a atitude
de palmatória do mundo diante dos personagens. Não
se trata de afirmar que os adultos se infantilizaram, que as crianças
perderam a infância ou que as famílias de hoje, artificiais
como bonecos playmobil, perderam o script do que fazer ou dizer.
Trata-se de mostrar o novo roteiro social da "felicidade":
a confissão e a autenticidade. Em nome da "autenticidade",
os indivíduos se sentem autorizados a confessar tudo o que
sentem ou pensam, pouco importa o que decorra da confissão.
À primeira vista, tudo parece uma honesta reação
à hipocrisia dos velhos tempos. No novo código moral,
toda ocultação é mentira, portanto qualquer
sandice dita vale cem sabedorias caladas. De fato, é possível
que algo de honesto exista em tudo isso. Mas entre o compromisso
com a verdade e a compulsão da confissão existe um
formidável abismo moral. No filme, o que é sobremaneira
constrangedor não é a desenvoltura com que os personagens
expõem as fantasias sexuais ou agressivas: é a incapacidade
de dizerem "não" à ordem cultural de confessar!
Fazer das relações humanas cópias de confessionários
religiosos ou divãs de psicoterapias não é
ser mais honesto, sincero ou autêntico: é desistir
do exercício da autonomia.
Há 20 anos, mais ou menos, a psicanalista Piera Aulagnier
dizia que o direito ao segredo é a condição
de se poder pensar. Pensar é buscar a coerência consigo
e, a partir disso, julgar o que é justo ou injusto, em decorrência
do contexto em que se pensa. Ao renunciarmos ao direito de pensar
e julgar, em favor da confissão compulsória, renunciamos
ao poder de selecionar o que é relevante para a vida moral.
Como qualquer forma de consciência de si, a "verdade
sentimental obtida por confissão" se apóia em
crenças e regras de conduta que não revelam, de imediato,
seus objetivos morais implícitos. A primeira dessas crenças
é de que, ao confessarmos o que sentimos, estamos "descobrindo"
algo sobre nós mesmos, até então enterrado
pela dissimulação social ou pela covardia emocional.
Quem confessa o que sente, mesmo ao preço de sofrimentos,
sente o alívio heróico de padecer pela "justa
causa". Ora, a confissão sentimental não descobre
nada. Ela inventa, isso sim, uma identidade pessoal que, sem a prática
da confissão, deixaria de existir. Assim como a confissão
religiosa criava a identidade do pecador, a confissão sentimental
cria a identidade do "sujeito emocionalmente maduro",
essa pífia figura da cultura do narcisismo. Para um budista,
um estóico, um Padre do Deserto ou um vitoriano esclarecido,
dedicar-se a confessar as esquisitices da vida íntima seria
não apenas despudor, mas estupidez.
A segunda crença é de que, ao confessarmos o que julgamos
indecente, podemos nos tornar totalmente transparentes à
nossa consciência e à consciência do outro. O
mito racionalista da onipotência cognitiva, no ato mesmo de
idolatrar o pretenso "irracional" humano, recalca o que
os moralistas franceses disseram há muito tempo, e que pode
ser sintetizado na máxima de Pascal: "O coração
tem razões que a própria razão desconhece".
Não precisamos recitar Freud para mostrar quão caricato
é o saber psicanalítico usado como aval científico
para a orgia da confissão leiga atual.
A terceira crença, enfim, é de que a verdade de nossos
desejos, impulsos ou inclinações é "mais
verdadeira" do que a verdade da sensibilidade à dor
e à humilhação do outro. Em uma cena do filme,
o aspecto grotesco da cultura da confissão aparece em toda
violência: diante do filho (Rufus Read), preocupado com os
mistérios da sexualidade masculina, o pai (Dylan Baker) não
hesita em dizer o que lhe vem à cabeça. A "autenticidade"
de seus sentimentos tem mais valor moral do que a delicadeza para
com o sofrimento e a perplexidade afetiva do filho criança.
Os personagens de "Felicidade" não são maus,
perversos ou "seres reprimidos" ávidos por liberação;
são, pura e simplesmente, indivíduos inconsequentes
e irresponsáveis, em relação às atitudes
morais que reclamam para si. Ou seja, todos querem ser compreendidos,
tolerados, perdoados e inocentados no que sentem e dizem, mas nenhum,
exceto o personagem de Joy Jordan (Jane Adams), duvida que a prática
da boa vida consiste, exclusivamente, em saber e dizer "quem
se é" em matéria de sexo e agressividade. Passamos
da hipocrisia vitoriana, em que o inferno era o outro, para o vaudeville
nova-iorquino ou californiano da auto-ajuda, em que o inferno está
dentro de nós, até que venhamos a cuspi-lo na cara
dos outros.
Não temos por que nos sentir obrigados a escolher entre um
ou outro desses cacoetes mentais. Se escutarmos William James, entre
outros, podemos jogar fora a "chave dos loucos" e tentar
viver outras felicidades menos tolas e infelizes.
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